A Justiça apostou numa figura jurídica pouco utilizada para fechar o cerco a Joe Berardo: a desconsideração da personalidade jurídica coletiva. A investigação, liderada pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), não tem dúvidas sobre os indícios de “responsabilidade criminal” imputados ao empresário madeirense, que lhe permitiram obter, em 2006 e 2007, empréstimos de quase mil milhões de euros junto da Caixa Geral de Depósitos, Novo Banco e BCP, e depois “fugir” ao pagamento dos mesmos. As autoridades acreditam que esse dinheiro serviu para Berardo adquirir ações do BCP, o que lhe permitiu reforçar a sua posição acionista naquela instituição. Terão sido, aliás, esses títulos – que viriam a desvalorizar a pique – a serem dados como garantia (e a serem aceites pelos bancos) pelos empréstimos milionários.
Na hora de pagar as dívidas, o polémico empresário – que conta com uma vida recheada de peripécias e polémicas – escapou, depois de conseguir dissipar património através de empresas-veículo. Sem rasto de dinheiro ou bens, os bancos avançaram com uma queixa formal conjunta contra Berardo em 2019. Ontem, o empresário e o seu advogado, André Luiz Gomes, foram detidos.
Mais do que uma garagem?
Ficou célebre a gargalhada de Joe Berardo na cara dos deputados da Assembleia da República, aquando da audição no âmbito da comissão de inquérito à recapitalização da Caixa Geral de Depósitos. “Uma garagem”. Era aquilo que o empresário, na altura, garantia possuir. Pessoalmente, não tinha dívidas. E as sociedades devedoras já não lhe pertenciam.
A figura aplica-se quando há um mau uso de institutos próprios do direito societário, nomeadamente o aproveitamento ilícito da personalidade coletiva e a limitação de responsabilidades associada, para cometer fraudes ou abuso do direito
Para contornar o esquema, a Justiça preparou uma acusação que assenta na figura jurídica da desconsideração da personalidade jurídica coletiva. Quando é usada? Quando existe um abuso dessa personalidade e terceiros são prejudicados.
São situações onde há um mau uso de institutos próprios do direito societário, nomeadamente o aproveitamento ilícito da personalidade coletiva e a limitação de responsabilidades associada, para cometer fraudes ou abuso do direito. A desconsideração permite cessar os efeitos normais da autonomia da personalidade, porque esta foi empregue ilicitamente.
Com o passar dos anos, Berardo deixou de ter ligações formais a imóveis, títulos e obras de arte (das quais é um dos principais colecionadores europeus). Contornou, assim, qualquer hipótese de arresto de bens a favor dos credores. De forma fraudulenta e abusiva, acredita o Ministério Público (MP). A Justiça, porém, não ficou de braços cruzados: e “levantou o véu” – como em direito é vulgarmente conhecida esta figura –, identificando Berardo e o seu esquema. A Justiça quer agora colocar Berardo no banco dos réus.
“Levantar o véu” validado pela Justiça
O bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, não comenta o caso sob investigação, mas foi deixando pistas que permitem concluir que a estratégia utilizada pelo MP no caso de Joe Berardo não é virgem, principalmente quando entramos na esfera do direito comercial.
À VISÃO, Menezes Leitão esclareceu que “quando uma sociedade está a ser usada de forma abusiva, encobrindo, de forma fraudulenta, determinado indivíduo, a personalidade coletiva em causa é desconsiderada e procura-se atribuir a responsabilidade dos crimes à personalidade individual”.
Falando de forma abstrata, o bastonário recordou, ainda, que “na tradição do direito anglo-saxónico esta situação, que se designa por ‘levantar o véu’ da personalidade coletiva é muito usada”. “E apesar desta possibilidade não estar consagrada na lei portuguesa, tem sido considerada pela Justiça no âmbito do direito comercial”, acrescentou.
Recorde-se que a PJ e o MP deram, ontem, corpo à investigação, realizando cerca de 50 buscas em vários locais (como Lisboa, Funchal e Sesimbra). Joe Berardo e André Luiz Gomes foram detidos e passaram a última noite nos caloubços da PJ. O empresário é ouvido esta quarta-feira, no Tribunal Central de Instrução Criminal, pelo juiz Carlos Alexandre.