Em vésperas de celebrar o 77.º aniversário, o empresário madeirense que gosta de atender o telefone com um atrevido ‘Hello, darling’ foi detido pela Polícia Judiciária por suspeitas da prática dos crimes de burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
A megaoperação da PJ investiga a forma como Berardo conseguiu obter quatro empréstimos junto da Caixa Geral de Depósitos, mas o momento pede uma retrospetiva do percurso do empresário, investidor e colecionar de arte, pontuado por operações duvidosas, participações opacas e ganhos e perdas avultados e, claro, muito pouco património em seu nome. “Uma garagem, apenas”, diria na II Comissão de Inquérito à Caixa Geral de Depósitos.
Comecemos pelo início, num continente mais a sul.
África do Sul
Em 1963, José Manuel Rodrigues Berardo, nascido numa família humilde da ilha da Madeira, emigra para a África do Sul, como muitos daqueles ilhéus, em busca de uma vida melhor. Sem falar uma palavra de inglês e com pouco dinheiro no bolso, e começou por negociar legumes e embalagens. Dez anos depois, Joe Berardo – o nome que adotou desde então – passaria a transformar areia em ouro. Basicamente, Berardo investiu no projeto de um sul-africano de origem portuguesa, Tony Caldeira, que retirava os montes de areia que atulhavam as entradas das minas e de onde ainda conseguia extrair ouro suficiente para um negócio bastante rentável, numa altura em que o ouro estava em alta nos mercados.
Mas segundo Tony Caldeira, depois de as ações da empresa de Joe caírem a pique na bolsa de Joanesburgo, o empresário não só saiu do país como deixou os seus sócios sem nada – terá levado o ouro do cofre, os documentos que provavam que eles tinham 35% da sociedade e ainda terá oferecido ao Estado sul-africano uma dívida de 240 mil contos em impostos não pagos, segundo dados de 2003
Já em 1989 as contas da sua empresa Aujac tinham sido congeladas pelas autoridades sul-africanas, por andar a exportar cicas, um vegetal muito raro e cuja exportação da África do Sul é proibido. Vale a pena saber como era a intricada rede de empresas que o gestor contruiu naquele país, e cuja empresa mãe era a Johannesburg Mining & Financing Corporation (JMF) e sobre a qual a VISÃO escreveu em 1994, quando fez um extenso perfil do empresário.
Regresso à pátria
Falido em África, mas aclamado em Portugal, Berardo torna-se num dos principais acionistas do Banif – o Banco Internacional do Funchal – ao lado de Horário Roque ou Armínio Sousa Gomes ainda em 1988 e no ano seguinte recebe de Ramalho Eanes o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Precisamente em 1989, Berardo vende a sua já falida JMF a dois amigos, numa altura em que se acredita que as dívidas da empresa ascendessem a mais de um milhão de contos, na época. Mas, na Madeira, inaugura a sua Fundação com um capital de 4 milhões de contos, e que detém 20% da Empresa Madeirense de Tabaco, fazendo de Joe o sócio maioritário da companhia.
Desde a sua fundação que a Fundação – passe o pleonasmo – esteve envolvida em polémicas judiciais: consta que a organização usou uma corretora para obter benefícios fiscais ilegítimos mas as investigações foram ficando em águas de bacalhau. E enquanto isso, Joe Berardo ia diversificando os seus negócios, tendo inclusivamente participações em empresas canadianas e continuando, claro, a colecionar arte, apartamentos e carros de luxo. E é também no início dos anos 1990 que garante uma posição de 10,3% na SIC, para juntar a outras participações que foi acumulando em grupos de comunicação social, e que foram quase todas conseguidas da mesma forma: um significativo aumento de capital que outros investidores não conseguiam acompanhar e estava feito.
De onde vinha o dinheiro? As dúvidas foram persistindo ao longo do tempo, mas houve sempre suspeitas de engenharia financeira entre as empresas que detinha.
Em 2006, já o Comendador era amplamente aplaudido com um dos poucos self-made men portugueses, é assinado um protocolo de comodato entre Joe Berardo e o Estado Português, com a duração de 10 anos e que permite colocar no Centro de Exposições do CCB quase mil obras de arte pertencentes ao empresário. Custos para Joe? Zero. Custos para o Estado: todos os que tiverem a ver com manutenção e funcionamento de uma exposição com entradas gratuitas.
Neste mesmo ano fica definido que o Estado entra na Fundação Berardo como membro, tendo o mesmos poderes do empresário que, por estatuto, é presidente vitalício da organização. O Estado fica também com opção de compra sobre as 862 peças expostas no CCB.
Os créditos da CGD
Em abril de 2006, a CGD aprova o primeiro crédito a Berardo: um contrato de €50 milhões com a Metalgest, a holding do seu grupo empresarial, que permite a Berardo comprar ações de empresas cotadas. Em novembro, o madeirense escreve a Carlos Santos Ferreira, então presidente do banco público, a pedir uma linha de crédito de €350 milhões para comprar ações do BCP – onde tinha vindo a reforçar posição desde o ano anterior – e de outras cotadas. O empréstimo é aprovado em abril de 2007, mas não obedece às recomendações do parecer inicial da direção de risco do banco. Foi dispensado o aval de Joe Berardo, que também não o queria dar, e foram dadas como garantidas as ações do BCP, com um rácio de cobertura de 105%.
Tornando-se um dos acionistas de referência, Berardo foca-se em afastar os antigos gestores do banco, e é uma das principais vozes de apoio a Paulo Teixeira Pinto contra Jardim Gonçalves, que luta para recuperar o poder de demitir e nomear o presidente executivo da instituição, que entretanto está nas mãos da Assembleia Geral. Já com o contrato de crédito assinado entre a CGD e a Fundação Berardo, o empresário pede autorização ao Banco de Portugal para aumentar a sua participação qualificada no BCP, o que faz sem esperar pela resposta do regulador.
O banco central aprovaria a operação já depois de esta estar concluída, e pouco antes da demissão de Paulo Teixeira Pinto, em agosto de 2007. Em outubro, Berardo reforça a posição no BCP para 6,82% e no final desse ano, numa reviravolta que ficou sempre por explicar, surge o nome de Carlos Santos Ferreira para assumir a presidência do BCP. O banqueiro levaria consigo, vindos do banco público, Armando Vara e Vítor Fernandes.
Já com Faria de Oliveira ao leme da CGD, é aprovada a libertação de €38 milhões da linha de crédito contratada no ano anterior para Berardo acompanhar um reforço de capital do Millennium BCP. Já durante a CPI à CGD, Faria de Oliveira lembrou que nessa altura foram pedidas mais garantias, como o aval pessoal de Berardo – o que na verdade, não valeu de nada.
A trama BCP
A queda do Lehman Brothers e a crise financeira mundial que de repente caiu sobre as nossas cabeças, e depois de vários reforços de garantias, incluindo entregas de ações do BCP – que entretanto despencavam em bolsa – Berardo entra em incumprimento pela primeira vez em novembro de 2008.
No mês seguinte, é assinado um Acordo-Quadro com os três bancos que são os maiores credores de Berardo, e que assegura o contrato promessa de penhor sobre os títulos de participação da Associação Coleção Berardo (ACB). Cada título foi associado a uma obra de arte específica para reforçar a segurança jurídica do contrato, e o contrato seria sempre a dividir pelas três instituições.
Durante os anos de 2009 e 2010 sucederam-se os contratos de penhor, que são entretanto concretizados, mas ainda assim os juros do empréstimo da Fundação junto da CGD não foram pagos, com o banco público concedido uma moratória dos mesmos até janeiro de 2011. E a título excecional, garantia. A verdade é que estes juros não foram pagos até março de 2012.
Quando, em dezembro de 2010 as contas da Fundação revelam que o Estado não entregou os €500 mil anuais previstos no protocolo para aquisição de novas obras de arte, o Comendador aproveitou a deixa: se o Estado não cumpria, ele também não tinha que o fazer.
No ano seguinte, uma auditoria do Banco de Portugal, liderado por Carlos Costa, dava conta de falhas várias na atribuição dos créditos concedidos pela CGD. O banco público chegou a ter mais de €4,5 milhões de créditos garantidos por ações. É neste ano que a direção de risco volta a manifestar-se, no âmbito de uma reestruturação de crédito que, concluía, “não permitia reforçar o valor previsível da recuperação do crédito”. Que é como quem diz: a CGD ficava a perder.
Até porque Berardo tinha dado um aval pessoal sobre, ‘apenas’, €38 milhões, mas só tinha em seu nome uma garagem no Funchal, pelo que esse era capital perdido. A Metalgest e a Fundação Berardo estariam em falência técnica se contabilizassem as ações que detinham ao valor atual do mercado. Não houve redução de dívida ou reforço de garantias…
Dívidas e mais dívidas
Em 2012, as dívidas de Berardo à CGD, ao BCP e ao então Banco Espírito Santo ascendiam a €1 027 milhões, e as três instituições assinaram um acordo de reestruturação de dívida. No entretanto, a participação de Berardo no BCP vai decrescendo: no final desse ano, já só detinha 3% do banco.
Em 2016, Joe Berardo consegue um renovado acordo com o Estado, que faz nas costas dos bancos credores e ainda muda os estatutos da Associação Coleção Berardo, dona das obras expostas no CCB, o que lhe permite continuar a resistir aos à tona de água. Isto porque o Tribunal da Comarca de Lisboa dá razão a um cidadão que, em 2013, deu entrada numa ação a pedir a nulidade da alteração dos estatutos que deu poderes aos bancos na sequência do acordo assinado no final de 2008. Com a sentença na mão, Berardo volta a alterar os estatutos da Associação e ainda consegue uma adenda ao protocolo de 2006, que garante a exibição da coleção até 2023.
Isto levantava um obstáculo à execução da opção de compra por parte do Estado, que poderia ter ajudado no abate da dívida à CGD. Numa altura em que o banco estava particularmente pressionado pela Comissão Europeia devido à reestruturação que tinha sido negociada aquando da intervenção de que o País foi alvo, esta almofada de capital teria sido de elevado valor para a instituição pública.
Quem ri por último?
Em 2018, Joe Berardo tenta levar algumas das suas obras mais valiosas a Londres, para as avaliar tendo em conta uma eventual venda, mas é impedido pela Direção-Geral do Património Cultural. Na mesma altura, os bancos credores tentam efetivar o penhor da coleção de arte moderna de forma a conseguir minimizar os danos que se iam acumulando ao longo dos anos. Mas Berardo não quer perder o controlo das suas obras, e portanto o acordo que chegou a estar em cima da mesa entre bancos e empresário cai por terra sem acordo: as instituições financeira fazem então um ultimato ao empresário, que ou aceita os termos propostos para uma reestruturação da sua dívida, ou enfrenta uma execução.
O Comendador não aceita, os bancos avançam para a via judicial e a II CPI à CGD acaba por parecer virar o tabuleiro do jogo. A postura de algum descaso e de displicência perante os deputados à Assembleia da República, as afirmações de que não era dono de coisa alguma e de que não deveria nada a ninguém soaram a provocação, e nem credores nem populares gostaram do que viram. Sobretudo quando Joe Berardo gargalha na cara de Cecília Meireles, quando ela o questiona sobre a possibilidade de deixar de mandar na Fundação que tem o seu nome.
Terá sido também esse o momento que deu o mote para a investigação entretanto iniciada pela PJ e pelo Ministério Público, que culminaria de detenção do ainda Comendador. Que pode perder a Comenda, para além da coleção. E da liberdade.