Há pouco mais de dois anos, Marcelo Rebelo de Sousa fez clique no cronómetro presidencial. O Chefe do Estado, explicava o próprio a 23 de maio de 2016, jamais seria um fator de instabilidade no panorama político português, mas as autárquicas do ano seguinte ditariam a viragem para o segundo ciclo de uma legislatura atípica. E assim foi. O PS obteve a maior vitória de sempre na corrida ao poder local, conquistando 161 câmaras municipais na noite de 1 de outubro de 2017, e (quase) tudo se alterou. António Costa percebeu que tem cada vez mais condições para engrossar a voz quando negoceia com Catarina Martins e Jerónimo de Sousa (ou até para os ignorar quando assim entender); o PSD ainda lambe as feridas da saída de cena de Pedro Passos Coelho e da ascensão de Rui Rio; o BE e o PCP esforçam-se por demonstrar que, formalmente, continuam a ser oposição (em versão light); e o CDS não se tem desviado do trilho de emancipação face ao antigo parceiro de coligação no Governo.
Enquanto isso, no chamado País real, depois da tragédia de Pedrógão Grande e concelhos limítrofes (que vitimara 66 pessoas), os fogos voltaram a matar 50 cidadãos na região Centro. Consequências? Poucas. A maior, até ver, terá sido a demissão da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, precipitada por uma mensagem arrasadora do Presidente da República. Depois, mais alguns meios para a Autoridade Nacional de Proteção Civil e muita reflexão sobre o interior e a floresta.
A Tancos regressou todo o material militar que subitamente tinha desaparecido. E até uma caixa de petardos que nunca estivera naqueles paióis. Os coronéis que temporariamente tinham sido exonerados, esses, até mereceram uma proposta de promoção.
No Portugal das contradições que vai a debate esta sexta-feira na Assembleia da República e em que o Governo repete à saciedade que aumentou o investimento na rede escolar pública e no Serviço Nacional de Saúde, os professores quase provocaram uma convulsão em época de exames nacionais por não verem atendidas as suas pretensões de contagem integral do tempo em que as carreiras estiveram congeladas e os hospitais estão à beira da implosão, em grande medida pela escassez de pessoal – mesmo que o Executivo insista que as 35 horas de trabalho semanal nada têm a ver com isso.
António Costa e Mário Centeno recusam que a realidade mais negra que a esquerda e a direita pintam os impeça de brilhar em Bruxelas. Apresentam défices sucessivamente mais baixos (o de 2018 está estimado em 0,7% e o de 2019 em 0,2%) e têm cartadas importantes para jogar junto da opinião pública: a economia cresce como nunca se viu neste milénio – embora tenda a desacelerar – e a criação de emprego em termos líquidos está a bater todos os recordes. Pormenor: em 2017, brindaram os portugueses com a maior carga fiscal de sempre.
Ora, o País político não está muito diferente do real: ambivalente. António Costa está de pedra e cal no Largo do Rato e ninguém questiona a sua autoridade, mas os putativos sucessores (Pedro Nuno Santos, Ana Catarina Mendes ou Fernando Medina) já se acotovelam a pensar no futuro – venha este quando vier. Rui Rio assinou dois acordos com o Governo (um sobre descentralização e outro em torno dos fundos comunitários) e, entre a família social-democrata (cada vez mais desavinda), há quem não perdoe o papel de bengala a que, afirmam, se tem prestado.
Pedro Santana Lopes que o diga, sobretudo depois de, em entrevista à VISÃO, ter anunciado que o casamento com o seu PPD chegou ao fim. Desta vez, para valer. A voz do antigo primeiro-ministro foi a mais cristalina, embora outros (como aquele que muitos consideram o senhor que se segue na Rua de São Caetano, Luís Montenegro) assumam um temor maior: que o presidente do PSD estenda a mão ao PS em 2019 e seja reeditado o Bloco Central, de que todos garantem fugir como o diabo da cruz.
É verdade que continua atrasado, contrariando as piores profecias, e que os portugueses ainda não o puderam vislumbrar, mas vai mesmo ser o diabo preparar o Orçamento do Estado (OE) do próximo ano. Jerónimo de Sousa até desabafou ao Expresso que o ambiente estava “toldado” nesse capítulo – e Marcelo avisou que ou há entendimento ou vamos para eleições antecipadas.
Seja como for, este será o último OE da legislatura e bloquistas e comunistas não querem menos do que muito. Precisam de trunfos para se apresentarem às europeias da primavera e às legislativas do outono. Até lá, esperam as duas forças que suportam o Executivo, há um mega pacote de legislação laboral para apreciar. E a disponibilidade do PS para negociar não será mais que poucochinha.
De igual modo, os socialistas vão dando sinais de que a renovação dos acordos à esquerda pode não ser mais que uma miragem. Ainda na quinta-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, veio assinalar, em entrevista ao Público, que a haver posições conjuntas v2.0 estas terão de incluir a dimensão da política externa (incluindo a europeia), ponto de insanável tensão entre o PS, de um lado, e BE, PCP e PEV do outro. António Costa apressou-se a corrigir o seu número dois, mas o tiro estava dado.
Na semana passada, foi dado não um tiro mas uma estocada no projeto do PAN para impedir a realização de touradas em todo o País, da mesma forma que, semanas antes, uma coligação não tão improvável quanto isso (PSD, CDS e PCP) chumbou as propostas do PS, BE, PEV e PAN para descriminalizar a morte assistida de doentes crónicos com elevado grau de sofrimento.
Já a classe política e os contribuintes continuam a sofrer, e muito, com alegados casos de corrupção. Em outubro de 2017 foi finalmente conhecida a acusação a José Sócrates (a quem o Ministério Público imputa 31 crimes). O ex-ministro da Economia Manuel Pinho é suspeito de ter recebido uma avença mensal de 15 mil euros do BES enquanto desempenhava funções governativas. E, mais recentemente, a Justiça, através da Operação Tutti-Frutti, apertou o cerco ao PSD de Lisboa (e também ao PS) devido a esquemas de caciquismo, contratação irregular de assessores e ajustes diretos controversos.
Em linhas gerais, é este o estado a que chegámos em julho de 2018 e que vai a debate esta manhã. No fundo, serão longuíssimos 226 minutos para se chegar à inexorável conclusão de que o estado da Nação não é mais do que um barómetro para uma eleição. E estão duas à porta.