Dono e senhor dos destinos do PSD na Madeira há décadas, Alberto João Jardim sempre
acreditou que, na hora da saída, escolheria o sucessor. Bastou, por isso, ao monárquico Miguel Albuquerque decidir desafiar o «rei» e quebrar um tabu com 36 anos para sentir os efeitos da peçonha habitualmente reservada às oposições.
Logo após o anúncio da sua candidatura à presidência do partido, o Jornal da Madeira, órgão oficioso do regime financiado pelos depauperados cofres públicos da autonomia, entrou em campo. Em artigo de autor desconhecido e fontes anónimas, o autarca do Funchal foi considerado uma espécie de cavalo de Troia da Maçonaria e do grupo Blandy (proprietário do Diário de Notícias da região) com objetivo de «tentar rebentar o PSD/Madeira por dentro» e aproveitar-se «das dificuldades da conjuntura atual».
Num ápice, apareceu outro candidato. E até um eventual interessado. Ambos, desconfia-se, incentivados por ordens superiores. «Jardim já é candidato, pelo menos através de outros», ironiza Albuquerque. O primeiro adversário é Manuel António, secretário regional do Ambiente. O segundo poderá ser o vice do Governo Regional, João Cunha e Silva, arquirrival de Albuquerque. Dele se diz que, qual Iznogoud, também quer ser
califa no lugar do califa, mas disposto a esperar sentado. Ou seja, quando Jardim decidir ir à sua vida. Cunha e Silva, esse sim, foi dado, em tempos idos, como membro do Grande Oriente Lusitano.
No caso de Miguel Albuquerque, o avental é recente e serve propósitos mais prosaicos: incluem fusili com cogumelos porcini ou perna de borrego da Nova Zelândia perfumada com gengibre, especialidades
que cozinhou num evento gastronómico.
‘O MIGUEL’ AO ESPELHO
Mas, afinal, que mal fez este advogado, de 51 anos, atualmente a cumprir o último mandato à frente da maior câmara da ilha? O que o faz dizer ao que vai a um ano de distância das eleições no PSD-Madeira, isto se Jardim, por conveniências várias, não as atirar para o final de 2013, depois das autárquicas?
Miguel é um dos aficionados do Leopardo, mas não lhe veste a pele. Se na Madeira for preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma, ele diz-se fora de jogo: «Sempre me pareceu que a mensagem do príncipe de Lampedusa se referia aos vestígios de um tempo que não volta. A Madeira tem de mudar. Mudar
mesmo», desafia. A procissão ainda vai no adro, mas ele «já esperava que alguns pusessem as unhas de fora». Na verdade, «limitei-me a exercer os meus direitos e a dizer o que outros dizem nos cafés e pelas costas: o PSD-Madeira está governamentalizado, fechou-se. Quero dar a este povo um horizonte de esperança», assume.
Tarefa difícil. Após anos de desvario financeiro a maquilhar o progresso, a Madeira
sobrevive com um resgate de 1 500 milhões de euros e mantém a respiração assistida pela troika e pelo Governo da nação, onde Jardim não tem propriamente amigos. Miguel, pelo contrário, é unha e carne com Pedro Passos Coelho, mas pede que não se caia na tentação de ler conspirações: «As pessoas conhecem-
me, não sou candidato de ninguém. Numa altura em que só se pensa no dinheiro e se faz um discurso contabilista, feito de metas e equações, quero dar às pessoas razões para acreditar na luz ao
fundo do túnel».
Nas ruas do Funchal, ele é «o Miguel», dado o trato familiar e próximo das populações.
Foi o homem sem sono na enxurrada de 2010, é o «mais-que-tudo» dos velhinhos, dispersos pelos ginásios da terceira idade e a universidade sénior. Agora, distribui hortas urbanas às centenas. Resistiu a uma auditoria que descobriu 104 irregularidades na gestão da autarquia e aos preconceitos do próprio partido, dentro do qual lhe criticam as aproximações ao CDS, o destempero das críticas e uma certa postura aristocrata, excêntrica e vagamente intelectual.
Sim, Miguel Albuquerque toca piano, gosta de bossanova, mas o jazz é a sua praia. Lê Martin Amis e Saul Bellow, sente-se deslocado por ainda apreciar Virgílio Ferreira nos tempos que correm e diz ter sido educado «a saber de tudo um pouco, da culinária à porcelana chinesa». No liceu, andava com botas de
atanado, um certo desleixo revolucionário no vestir e com Rousseau debaixo do braço. Tocou em hotéis e integrou várias bandas. Na editora Alêtheia, de Zita Seabra, publicou livros sobre rosas antigas e crónicas políticas. No PSD, é um dos delfins, designação pela qual se conhecem os eternos candidatos a um lugar
que tarda em vagar no partido e no Governo. Mas ele é dos que desafi na. «Não me calam», diz. Recusa ser «adorno para o ramalhete da democracia» e fazer do partido «uma central de distribuição de mordomias para meninos e meninas». Também não se revê no parlamento regional, cuja postura «terá de ser outra. Aquilo afeta a imagem da Madeira no exterior».
O Continente conhece-o sobretudo pela presença habitual nas revistas do coração, das quais não foge. Uma declaração de amor à monarquia constitucional, um festival de jazz, um torneio de golfe ou a sua devoção à Quinta do Arco, no Norte da ilha – onde floresce, com o seu trato, o maior roseiral da Península Ibérica – garantem-lhe páginas harmoniosas e fotografias perfumadas junto do jet set da ilha e do «retângulo». Junte-se a isso a pública e, por vezes, tumultuosa vida amorosa, onde cabem um casamento de 12 anos, várias namoradas, cinco filhos e uma nova companheira e temos figura: «Gosto de festas e de me divertir, e depois? A minha vida é o que é. Não faço de santinho, como alguns que por aí andam, nem finjo ser o que não sou»,
defende-se.
Falta saber se carrega com ele os genes do avô Francisco Machado, jovem tenente republicano, protagonista da «Revolta da Madeira» contra a ditadura nascida do golpe militar de 1926. O avô acabou deportado para Cabo Verde, ao neto já o queimam em lume brando. Com Jardim, o verniz estalou há um ano no congresso do PSD-Madeira: Miguel falou em renovação, recusou lugares envenenados e nem estava na sala quando o líder regional discursou. «Ouvi pela rádio», disse. Agora assume o confronto, sem meias palavras: «Se pensam que me intimidam, estão enganados. Serei candidato ao PSD-Madeira mesmo que Jardim se recandidate.»
A GUERRA CIVIL E O ‘TITANIC’
A oposição olha o espetáculo da vida interna dos sociais-democratas madeirenses com ironia, dando corda ao estardalhaço. Na primeira fila, está o PND. Para a deputada Rubina Sequeira, o PSD-Madeira «parece o Titanic». A eleita da Nova Democracia afirmou-o em pleno parlamento regional, trazendo à memória o momento em que o navio «estava a afundar» e os homens se vestiram de mulheres para se salvarem. A comparação serve para ilustrar o caso da Câmara do Funchal, onde Rubina vê o poderoso empresário e secretário-geral do PSD da região a manobrar na sombra, atirando Albuquerque para a sucessão e deixando
o atual líder regional entregue à sua sorte. «O Jaime Ramos detém o poder económico e já percebeu que o tempo de Jardim acabou. A candidatura do Miguel Albuquerque é apenas o instrumento para, mais tarde, entregar o partido ao filho, o Jaiminho», acredita a jovem deputada, estreante na Assembleia Legislativa.
Na autarquia funchalense, Gil Canha, também do PND, tem um posto de observação privilegiado. Vereador, o ambientalista considera estar em marcha o plano B para a sobrevivência do jardinismo… mas agora sem Jardim. «O macho dominante aparece diminuído e quando o leão está ferido até as hienas o mordiscam», ilustra. Se Albuquerque pretende ser «o Marcelo Caetano da Madeira, na sua face mais polida, democrata e civilizada», deve-o a uma aliança com «os ultras e os grandes empresários do regime na guerra civil pelo poder no PSD». Gil acusa o presidente da Câmara de usar os meios do município «para alimentar a oligarquia
em tempo de crise, pois é o único a poder distribuir privilégios e benesses».
As denúncias do vereador sobre a «podridão» do regime têm um custo elevado, mas ele diz que é o preço a pagar por enfrentar as mais obscuras fações do PSD. Gil Canha relaciona essa postura com a circunstância de terem sido vandalizados e incendiados os carros do irmão e da mulher. Ele próprio foi agredido e viu fogo suspeito no bar Amazónia, do qual é proprietário. Ações metódicas e sucessivas que atribui «à juventude hitleriana do partido do Mijinhas e às suas bonecas cadastradas», leia-se «tropa de choque do PSD», onde abundam «arruaceiros de toda a ordem e feitio» mobilizados para «condicionar e intimidar».
Não será o caso dele, desiluda-se quem assim pensar. Gil Canha vai até ressuscitar o Garajau, jornal «satírico e cruel» que, enquanto durou, fez estragos no Governo regional e no partido dominante. «O poder judicial tentou asfixiar-nos, mas o estado do PSD e o colapso do jardinismo justificam que voltemos à carga.» Quem não tem cão, caça com pássaro. De bico alaranjado, note-se.