Numa TED Talk que ficou famosa, proferida há pouco mais de um ano e que já leva milhões de visualizações na net, o cientista político Ian Bremmer soube logo captar a atenção do público com o título da conferência: A Próxima Superpotência Global não Será Aquela em que Está a Pensar. Para desfazer o mistério, aquele que é um dos mais requisitados consultores sobre geopolítica avisa a audiência para não concentrar as atenções apenas no confronto entre a China e os EUA pelo controlo ou a partilha da ordem mundial. E aconselha a que se passe a olhar antes para uma nova realidade em formação e que pode ser a mais importante de todas: uma ordem digital que, ao contrário das outras, já não será administrada por governos – sejam eles democraticamente eleitos ou ditaduras –, mas por empresas de tecnologia.
O aviso de Ian Bremmer não deve ser catalogado no domínio da ficção científica. Os sinais são todos coincidentes e, a cada dia que passa, mais se vai percebendo como o poder global das grandes tecnológicas é superior ao da maior parte dos governos.
Com uma influência por vezes quase sufocante no comportamento das pessoas, já estamos no momento em que a identidade de cada um não é construída unicamente com base na genética familiar e na educação, mas também passou a ser formatada e até modificada pelo poder dos algoritmos, que determinam a informação que recebemos e os estímulos sensoriais que vão moldando a nossa personalidade. E à medida que essa tendência vai crescendo e os governos abdicam da sua autoridade reguladora ou até do seu poder, as empresas de tecnologia tornam-se dominantes. Os seus líderes estão a um pequeno passo de acumular um poder jamais visto anteriormente e que, ainda por cima, não precisa de ser sufragado em eleições nem de obedecer à narrativa de que deriva do povo ou de uma escolha divina. Mais: ao contrário dos Estados, nem sequer estão obrigados a repartir a imensa riqueza que vão acumulando.
Ver o atual homem mais rico do mundo a dar tudo por tudo – até prémios de um milhão de dólares por dia para angariar eleitores – na campanha de Donald Trump não pode ser visto, neste contexto, como apenas um imperativo moral ou ideológico que Elon Musk achou agora por bem adotar. Por mais que ele repita que está ao lado de Trump para defender a “liberdade de expressão” – nas redes sociais, em oposição à imprensa livre e independente…– e o direito ao porte individual de arma (!), é por demais evidente que, caso o seu candidato regresse à Casa Branca, Musk passará a estar muito mais perto de alcançar um poder sem paralelo na História. E poderá passar a exercê-lo a seu bel-prazer, definindo ele próprio as regras e os limites.
Elon Musk não é, no entanto, o primeiro super-rico a procurar obter relevância política e a usar um candidato para tentar alargar o seu domínio e a sua sede de poder. Apesar de ser agora o homem mais rico do mundo, ele não é o mais rico de sempre. A sua fortuna imensa ainda é, em termos comparativos, inferior à do primeiro bilionário americano, o magnata do petróleo John D. Rockefeller Sr. E embora o fundador da Tesla seja um revolucionário da indústria automóvel, o seu peso e a sua importância ainda não se comparam com os de Henry Ford, que criou e dominou o mercado dos carros durante décadas. Estas comparações são hoje de extrema pertinência e atualidade, porque os dois titãs do passado acabaram por ser dominados e postos na ordem pelos poderes democráticos do país: Rockefeller foi obrigado a dividir o seu império petrolífero, por força das leis antimonopolistas dos EUA, e Henry Ford, que chegou a tentar concorrer ao Senado, acabou por ser ostracizado devido às suas simpatias nazis (foi inclusivamente condecorado por Hitler) e por ser um dos principais instigadores do ódio antissemita.
Desde meados do século XIX que sabemos que “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”, conforme a frase atribuída ao historiador e filósofo britânico Lord Acton, que lhe acrescentou uma conclusão já menos consensual, mas que ficou, desde então, como um lembrete que não deve ser descurado: “… de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus.” É por isso que as próximas eleições americanas não interessam apenas aos americanos – desta vez, as suas consequências podem atingir todo o mundo.
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