Há décadas que assistimos à transformação dos centros das cidades em parques temáticos para turistas. Das tascas e cafés em brunches e coffee labs. Os clássicos destinos de férias das famílias portuguesas – como o Algarve ou a costa alentejana – foram vendidos a retalho para resorts inacessíveis aos de cá. Chegamos a 2025 e, subitamente, é a presença do imigrante pobre, anónimo, que se esfola para dar um futuro à sua família, que nos faz sentir estrangeiros na nossa terra. Este discurso só tem um nome: cobardia.
O guião da novela é o mesmo em toda parte: são os protagonistas do espaço político que sempre quis vender a alma dos países ao lucro estrangeiro quem hoje vem chorar lágrimas de crocodilo, ai mãezinha, que os imigrantes estão a corromper a identidade nacional. São as mesmas pessoas.
Quem sempre achou lindamente impor o lucro como valor supremo sobre qualquer noção de bem comum surge-nos hoje de naperon rendado, a secar as gotículas no canto do olho, que a pátria amada já não é o que foi. E a culpa, claro está, é de uns senhores do Bangladesh que vieram trabalhar para nós de sol a sol. A sua mera aparição na rua basta para abalar toda a nossa vetusta cultura.
Sempre defendi o cosmopolitismo e o diálogo intercultural enquanto motor de progresso e do bem comum. Incluo nessa visão o investimento estrangeiro, bem como a importância social, cultural e económica do turismo. No entanto, junto-me a quem vem alertando há anos para o impacto da sua massificação na degradação da vida dos locais. O efeito do excesso de turismo está documentado, por exemplo, na crise da habitação ou na degradação dos ecossistemas. Nunca, em momento algum, vi um destes cavaleiros da pátria sequer pestanejar com esta tensão.
Vejamos: onde andavam estes paladinos quando, por exemplo, o quarteirão lisboeta do Rossio foi comprado e transformado na segunda maior Zara do mundo? Dois passos ao lado, nas Portas de Santo Antão, a Ginjinha Sem Rival, joia centenária fundada em 1890 pelo bisavô do atual gerente, está hoje mesmo a lutar contra uma ordem de despejo do investidor estrangeiro que comprou o prédio. Onde andam os nossos patriotas? Onde andam quando tantas lojas históricas, associações e espaços emblemáticos são escorraçados por interesses estrangeiros?
A resposta é muito simples: acobardados. Tal como se acobardam quando vêem jovens a emigrar por não conseguirem morar no seu país, ou idosos e mães com os filhos ao colo serem corridos dos bairros em que nasceram. Como se acobardam quando vêem ruas inteiras, cheias de vida e mercearias, varridas por fundos abutres e transformadas em passerelles sem alma. E tal como aplaudem a substituição do comércio tradicional pelas cadeias multinacionais que também podemos encontrar em Londres, Moscovo, Istambul, Nova Iorque ou Islamabad. É esta a moral de um sistema que é subserviente com os mais fortes e implacável com os mais fracos.
No fundo, não passa da velha estratégia: perante uma evidente degradação das perspetivas de vida para a maioria das pessoas, há que criar um espantalho para ser alvo do ressentimento. Já o vimos no passado, com consequências terríveis. Se os cidadãos estiverem entretidos a vigiar os mais fracos – atribuindo-lhes a culpa de todos os males -, não escrutinam aqueles que mais têm lucrado com a atual crise do modelo económico. Acima de tudo, não pedem contas a quem governa. Não exigem reformas, melhores serviços públicos ou uma estratégia de fundo para o futuro.
Enquanto caem na lengalenga, deixam de reivindicar uma política orientada para o bem comum – e acabam a aceitar a perpetuação de uma realidade insustentável, orientada para o bem de cada vez mais poucos. É esse o preço da cobardia. Não me parece digno vindo de quem se diz herói do mar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.