1. Em princípio não há que tirar grandes ilações políticas a nível nacional dos resultados das eleições autárquicas. Que são muito específicas e nas quais em geral, exceto em algumas das maiores cidades, a figura dos candidatos, sobretudo a do possível presidente da Câmara, têm mais importância do que a sua filiação partidária ou orientação ideológica. Têm ou deviam ter?… Adiante, não “cabe” aqui sequer a síntese de uma tentativa de resposta a esta pergunta.
A verdade é que, mais ou menos, com razão ou sem ela, tais ilações têm sido sempre tiradas – e o exemplo máximo foi a demissão do então primeiro-ministro, António Guterres, secretário-geral do PS, após os maus resultados do partido nas autárquicas de dezembro de 2001.
Desta vez não será exceção. Pelo contrário: e é natural, mesmo imperioso, tirar conclusões a nível nacional do resultado do Chega. Pela óbvia razão de o seu “chefe” ser candidato (em alguns casos “o” candidato…) em todos os concelhos, com o seu retrato nos milhares e milhares de cartazes disseminados pelo País. O que acontece pela primeira vez em meio século de democracia, nunca sucedeu com outros líderes partidários – mesmo quando não eram um André com o perfil e o percurso de Ventura, mas Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral… Acontece pela primeira vez, repito, com o assinalável significado que referi em crónica anterior.
Aliás, além do omnipresente (e, no Chega, omnisciente) Ventura, à falta de gente local para o efeito, o partido espalhou os seus deputados como candidatos autárquicos. Assim, o resultado do Chega dará a real dimensão do partido, no sentido de quantificar relativamente os seus fiéis ou incondicionais. Há a certeza que aumentará muitíssimo a sua representação autárquica, tenho a convicção que ficará longe de atingir a percentagem de votantes das legislativas.
2. Uma última nota a este propósito: mais uma vez Ventura foi muito “poupado” pelos média, e mesmo por outros partidos, ao silenciarem ou não darem relevo a factos e fatores para ele negativos, comprometedores. Já referi aqui o muito expressivo caso das declarações da D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, sobre os que são contra os emigrantes e seu acolhimento. Sem as querer comparar, refiro agora o facto da Ventura, deputado municipal em Moura, ter estado presente em duas sessões da assembleia e ter faltado a 30…
Teria um maior conhecimento destas e outras coisas por parte dos eleitores alguma influência na votação no Chega? Muito provavelmente, e infelizmente, não: sabe-se como este tipo de forças políticas em certos momentos da história é ou parece imune a tudo, mas… Talvez só não imune a um tipo de resposta frontal, veemente, neste momento até corajosa, num registo aparentemente semelhante ao seu como o usado por Isaltino Morais num vídeo em que termina dizendo-lhe “não passarás”.
3. Na última assembleia de credores no processo de insolvência da Trust in News, proprietária designadamente da VISÃO e do JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, os representantes do Estado, principal credor – através da Autoridade Tributária e da Segurança Social – propôs e fez aprovar a realização de uma avaliação por empresa a contratar do valor da insolvente e dos seus 15 títulos. O Administrador de Insolvência (AI) já tinha chamado a atenção para o seu avultado custo, para o que pelo menos no imediato não haveria verba disponível. Além disso tal avaliação, inevitavelmente demorada, só poderá fazer perder valor a títulos que não estão a sair ou, como a VISÃO, estão a sair em condições dificílimas, até porque quem os faz não está a ser remunerado e tem salários em atraso.
Por outro lado, e fundamental, uma empresa de comunicação social não é uma empresa de materiais de construção ou de enchidos. E jornais, revistas, que fornecem informação e opinião livres, sérias, independentes, e não visam, ou não visam só, ou primordialmente, o lucro – e se o visam é no respeito a princípios éticos e deontológicos inalienáveis – são essenciais para que exista democracia. Como todos os cidadãos conscientes e democratas sublinham, e como quem governa Portugal reconhece.
Assim, como vai uma empresa do ramo das “avaliações” avaliar o que, designadamente, valem estes valores? E como ignorar ou minimizar uma proposta já apresentada por aquela dúzia e meia de profissionais que, com salários em atraso, asseguram hoje a saída da VISÃO, para que ela se possa manter e não desvalorize?
Vai o Estado, através daqueles credores principais, manter tal posição e tal alheamento face os ditos valores?
4.O acima escrito aplica-se, e por maioria de razão, ao JL, jornal de letras, artes e ideias. Comuniquei ao AI e, informalmente, à assembleia de credores, a minha intenção/vontade de adquirir o título que eu próprio fiz e mantive: tido por impossível, ou de vida curta, criei-o e contra ventos e marés mantive-o, como diretor, durante 45 anos de publicação regular, sem falhas. Com trabalho, esforço, devoção, alguns (poucos) empenhados magníficos redatores, excelentes colaboradores só simbolicamente remunerados ou, talvez a maioria, pro bono!
O acervo do JL é riquíssimo, em termos da nossa língua e cultura, da lusofonia e da cidadania. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa escreveu, nos seus 40 anos um muito significativo texto no qual, além do mais, o considera, “uma como que autobiografia da Democracia Portuguesa”. Mais seis Presidentes de Portugal e do Brasil, de Jorge Sampaio e Cavaco Silva a Fernando Henrique Cardoso, e outras grandes figuras do mundo da lusofonia, sublinharam ser o JL “uma referência”, um jornal “único”, “imprescindível”, “traço de união entre todos os que falam português”, etc., etc.
De escritores, pensadores, artistas são inúmeros os testemunhos sobre a sua enorme relevância para a língua e cultura portuguesas, além de para os próprios criadores. O de José Saramago faz uma expressiva síntese ao perguntar “como estaríamos nós de comunicação com as partes do mundo que connosco culturalmente se preocupam, se o JL não existisse”?. E conclui: “Se eu fosse governo, uma coisa pelo menos faria justa: declararia o JL de utilidade pública”
Acresce que com o Jornal de Letras nunca se procuraram proveitos económicos, materiais – que aliás nenhuma publicação cultural consegue. Assim, o JL foi, é e continuará a ser naturalmente deficitário. Como então uma “avaliadora” o avaliará? Será que dirá como empresa ter um valor… negativo? E o Estado, se quiser preservar e desenvolver o seu acervo, permitir que continue a prestar ao País e à sua cultura os serviços que durante 45 anos lhe prestou, deve apoiar quem dê garantias de o manter e continuar no caminho de sempre?
Obviamente que só pelo que sei ser e representar, e também pela ligação umbilical que lhe tenho, me propus e proponho ficar com o seu título, na convicção ou esperança de ser possível constituir uma empresa, provavelmente a partir de outra com capacidade e com espírito de mecenato cultural que – como sublinhei naquela carta – “confira consistência e assegure o futuro de um projeto com um tão rico passado e percurso até ao presente”.
E termino com a mesma pergunta do ponto 3, quando de diversos pontos e de destacadas figuras da cultura do mundo da língua portuguesa me chegam manifestações de preocupação, de lamento ou mesmo de espanto pela situação vivida. A que respondo manifestando alguma esperança, ainda não sei se justificada.