Foi um discurso de agradecimento saramaguiano do outrora rapaz magro, de solipas nos pés e calças remendadas, operário não diferenciado, que, dos seus cabelos ralos embranquecidos, olha agora para o fundo da rua que é toda a sua vida e se vê doutor honoris causa.
“Eterno aprendiz de jornalismo”, Germano Silva, 85 anos, leu as primeiras frases da sua intervenção e emocionou-se. Por segundos, os camaradas de ontem e de hoje, as personalidades ilustradas e ilustríssimas que enchiam o salão nobre da Universidade do Porto neste final de manhã de 3 de novembro, engoliram em seco, tão cúmplices e comovidas quanto a voz embargada dele. “Ando sempre com o Germano. Debaixo do braço, nos passeios ou no coração”, confessou-nos Manuel de Sousa ou “Manuel do Laço”, figura típica da cidade, boavisteiro de berço, chapéu de coco e vestimenta a condizer, agradecido por presenciar, em lugar sentado, a distinção da academia a um homem admirado e admirável. “Depois deste momento, Deus vai guardar o Germano para sempre e ele vai continuar a ser ainda mais um homem do povo e para o povo”, afirmou, sorrindo.
Germano Silva é o 92º doutor Honoris Causa pela Universidade do Porto, juntando-se à galeria onde figuram, entre outros, Gago Coutinho, Manoel de Oliveira, Mário Soares, Fernando Henrique Cardoso, Jacques Delors, Xanana Gusmão, Nuno Teotónio Pereira, Agustina Bessa-Luís, Eugénio de Andrade, Nadir Afonso, Vasco Graça Moura, Jorge Sampaio e Marcelo Rebelo de Sousa. O atual Presidente da República não quis, de resto, ficar fora da homenagem, tendo enviado uma mensagem ao novo doutor e à universidade, elogiando o reconhecimento do “sentido de pertença e de comunidade” protagonizado por Germano Silva. A ele se dirigiram amigos, familiares e camaradas de ofício agradecidos por com ele aprenderem e trocarem histórias sobre o Porto e o País. Os elogios vieram também do “padrinho” e cardeal-patriarca D. Manuel Clemente, Miguel Cadilhe, Rui Moreira, Rosa Mota, Hélder Pacheco, entre centenas de outros notáveis da política, do jornalismo, das artes, da economia e das mais variadas labutas e cumplicidades que a Invicta tece.
Um homem na cidade
Mas a que se deve tamanha honraria, interrogou-se o próprio Germano quando soube da notícia através do reitor Sebastião Feyo de Azevedo. Esgravatando no fundo de si, encontrou uma só resposta: “Ao longo de toda a minha vida me habituei a saber ouvir aqueles que tinham alguma coisa de proveito para me dizer”.
Germano Silva lembrou a avó Júlia, a Júlia das Quintãs, analfabeta, a “primeira mestra”. Senhora de cantigas improvisadas, de litanias, que lhe ensinou “a ver o vento no ondular das searas e a conhecer o nome dos pássaros pelo canto” nos intervalos das pequenas tarefas domésticas, entre o mugir das vacas e o amassar da farinha para fazer o pão.
Germano lembrou Hermínio, militante da Juventude Operária Católica, companheiro da fábrica de lanifícios de Lordelo do Ouro, que lhe ensinou a encarar a vida com otimismo e confiança. Recordou, enfim, o bibliotecário Evaristo que não o deixou ler a Eneida antes do tempo e, afinal, “tinha razão”. Com eles, com os seus camaradas do Jornal de Notícias, a sua casa-mãe, aprendeu o ofício das palavras, dos números, do exercício da cidadania. Mencionou-os um a um, de Manuel Ramos, a António Brochado, de Freitas Cruz a Nuno Teixeira Neves, de Rui Osório a Manuel António Pina, “o irmão”, sem esquecer Frederico Martins Mendes, Sérgio de Andrade ou José Saraiva, “que me aturaram e a quem tão pouco dei”. Deles guardou as frases que fizeram a sua biografia, os seus afetos pelo ofício, pela cidade, pelas personagens de reverência, sejam elas de cátedra ou que nela respiram quotidianos em pedra bruta, sem distinções de classe. “Só serás um bom repórter da cidade se conheceres bem o Porto, a sua história e a história da sua gente”, disseram-lhe. E ele assim fez, pela vida fora, juntando outro amor à sua história com mais de 60 anos de jornalismo: o semanário O Jornal (antecessor da VISÃO), do qual ainda releva o orgulho de ter trabalhado com Cáceres Monteiro, José Carlos de Vasconcelos, Fernando Assis Pacheco e Afonso Praça.
No seu percurso cabem muitos nomes, muita cidade, “homens generosos que formaram gerações de jornalistas sem procurar outro benefício que não fosse o de ficarem com a certeza de que estavam a passar o testemunho com segurança e a gente certa”. No altar da amizade lá está também o antigo colega marçano, Nuno Canavez, alfarrabista da Livraria Académica, espaço de tertúlias matinais ainda hoje concorridas. E ele, Germano, sempre frequentador e ouvinte, “dos mais atentos”, diante de ilustres da política e da cultura nacionais.
O povo, espelhado nele, nas agruras e na dedicação benfazeja das suas palavras, ascendeu agora à academia. “Pela primeira e única vez na sua vida entrando por cima, assentando praça em general”, Germano Silva representa, no dizer de Luís Miguel Duarte, da Faculdade de Letras e “elogiador” formal do doutorando, os tempos “em que os jornalistas, em vez de darem a volta à Internet, em busca de notícias, davam a volta ao mundo”. Mesmo tratando-se desse “pequeno mundo” que era o Porto.
“Aqui estou, no meio de vós, falho de meios e com não maiores virtudes”, agradeceu Germano, no final da sessão. O rapaz de solipas deu lugar ao “senhor já maduro, de cabelos brancos” que acabara de receber o título de doutor “com o orgulho de quem nunca traiu os testamentos legados pelos seus maiores e com a vaidade de ser um vosso igual”.
A caminhada teve pés descalços, fome, sobrevivências sentidas até ao osso. Depois, muito depois das canseiras, vieram os frutos do trabalho, do saber acumulado e da dedicação de palavra honrada à memória e identidade de uma cidade e das suas gentes. Saibam, pois, desde já: vem longe o fim dessa história de amor incondicional. Se depender dele, o percurso “ainda está para durar”.