Crónicas
Olhar o passado nos olhos, mesmo que doa
Nada é eterno. Durante 48 anos, o meu avô acreditou viver naquele que era aos seus olhos o melhor e o mais justo dos regimes. Nesses anos, milhares de portugueses viveram na miséria, calados, com medo, com fome de tudo, mas sobretudo de liberdade. Eram muitos, mas não foram os suficientes. E talvez nunca tivessem sido, se a guerra colonial não tivesse tornado absolutamente insuportável o que até aí a maioria aguentava, mais ou menos resignada
As mulheres metem medo
A ideia de que há uma guerra entre géneros só favorece os homens que odeiam as mulheres. E eu acredito que nem todos os homens odeiam as mulheres. Mas por algum motivo estamos a deixar que regresse uma retórica bafienta que pensávamos enterrada num passado de horrores. Mesmo que não pareça, este é o tempo de falar de amor. E de olhar para o exemplo de Ahoo Daryaei, abraçando-nos para segurar o medo que temos por dentro, enquanto enfrentamos quem nos teme. Não, não temos de nos esconder
O caminho para sair do medo
E é por aí que temos de ir, sabendo que a cada onda de medo e opressão que se aproxima, cabe-nos dar o peito e mostrar o caminho, porque ele existe, mas apenas se acreditarmos nele. Quando o começarmos a imaginar, ele começará a aparecer. E, então, estas frases de desalento parecerão apenas a memória de umas trevas que já deixámos (outra vez) para trás
Uma escova de cabelo que lavra o tempo ou O número perdido
Semicerro os olhos como faço para ver ao longe, o passado são cargueiros que invento para pousar na linha do horizonte
Que eu nada mais tenha
Ela, a mulher, chama-se Gisèle. Não sei o que escrever sobre a Gisèle. Como escrever. Despedaçada
Estamos a perder amigos e a razão é política
Quando fizermos uma equação que traduza a dificuldade de ter e manter amigos devemos juntar às horas de trabalho infindáveis e desreguladas, às exigências da família, aos custos da vida social, à emigração forçada de quem procura uma vida melhor, o facto de termos casas incomportavelmente caras e serviços públicos degradados
O lugar do juízo (ou da falta dele)
Haverá poucas coisas que mais dividam os seres humanos do primeiro mundo do que a forma como educam os filhos. Começa na fraturante discussão sobre métodos de introdução alimentar e vai por aí adiante, com batalhas campais sobre quais os castigos adequados (se é que há algum), os decibéis que as professoras podem atingir sem serem acusadas de maus-tratos ou a forma como ensinamos os limites do corpo e o respeito pelo outro aos nossos filhos. Sim, até a decência pode ser problemática.
Dar a cara por todas
Gisèle está a mostrar-nos um caminho. Está a ensinar-nos que é o criminoso aquele que tem de se esconder. Fá-lo com um esforço indizível, que talvez não chegue sequer para fazer-nos avançar mais do que uns centímetros nesta longa caminhada. Mas vamos continuar a andar. Por muito que nos travem, não vamos parar
Meninos "fechados na rua"
Depois de um verão à procura de atividades para crianças e de perceber que muitas (sobretudo em agosto) têm valores absolutamente incomportáveis, pareceu-me que talvez a história deste menino não seja só de abandono e negligência, mas também de desespero e falta de apoio
Perdidos e achados
Na catequese, a irmã Flores foi categórica, Os animais não têm alma, Deus não os quis com alma, criou-os para nossa serventia
E que tal pôr rodas aos professores?
Os professores já estão habituados a acabar agosto com o coração nas mãos e as malas à porta, numa migração interna que em Portugal é capaz de só ter comparação com aquela que, até aos anos 70, levava milhares de camponeses rumarem da Beira Alta para o Alentejo para ceifar. Eram conhecidos como os “ratinhos”, porque, diziam os do sul, iam para lá “roer o nosso pão”. Os professores de agora parecem, porém, condenados a comer apenas o pão que o diabo amassou.
Uma operação ao cérebro dos nossos filhos
Parecem fechados para dentro, mas estão de portas escancaradas para o mundo. Os desconhecidos entram-lhes no quarto a meio da noite. As crianças a quem costumávamos ensinar a não aceitar doces de estranhos passam agora horas a falar com eles, confessando-lhes os segredos, aprendendo-lhes os valores, seguindo-lhes os exemplos nos vídeos de Youtube que parecem tão inofensivos, mas que não nos damos ao trabalho de ver, nos posts de Instagram, que lhes moldam os sonhos, nas dancinhas do Tik Tok, que os absorvem até à alienação. Não admira que deixemos de reconhecer os filhos que, no fundo, não criámos
A brincar na lama
Em Luanda, era habitual céu e terra zangarem-se para logo de seguida fazerem as pazes. A chuva despejava-se, torrencial, mas não tardava que o sol aparecesse
Sofá-cama
A leitura foi minha amante, muito antes de o sexo começar a cravar as suas garras em mim
A banalização do mal e o fim da política
A castração, a pena de morte, a prisão política. O desejo de aniquilação do outro, motivado por um suposto sentido de justiça. A forma como a racionalidade desapareceu de um discurso público inflamado por uma indignação contínua e estéril, está a ter efeitos profundos
E o povo, pá?
A erosão dos direitos causa uma sensação de desorientação que nos impele para narrativas de ódio, para soluções populistas, para a contestação ao sistema, mesmo que nos seja óbvio o quão inconsequente é essa contestação. Deitamos mão ao instrumento que nos disseram ser uma arma: o voto.
A orelha de Trump, o nariz da Cleópatra e uma bola de ténis
Se não soubermos perceber os mecanismos que fazem de Trump um símbolo, não conseguiremos nunca combatê-lo. Os homens providenciais não existem. São só uma forma de entendermos o mundo. Quando a morte os leva, o que lhes deu poder encontrará outras formas de persistir, se a semente das suas ideias conseguir encontrar um solo fértil onde crescer
Silentium Universi
Todos os outros membros do Clube dos Amigos dos OVNIS eram rapazes mais ou menos da minha idade e da do André, à exceção do Toni que já devia ter uns dezasseis anos
"É um país estranho, a França". Será mesmo?
Este retrato esbarra na caricatura dos franceses mimados agarrados a direitos incomportáveis para um país que já supera os 5% do seu PIB em défice. É um retrato feito de desigualdades profundas que as políticas das últimas décadas só agravaram. E é aí que reside a chave do imbróglio político francês, que é o espelho do que se passa um pouco por todo este velho continente
Avara, não, a vara
Sentia-me superior aos meus colegas por ler livros que nos eram proibidos. (Muitas vezes, a rebeldia não é mais do que a solidão disfarçada)