O sr. Virgílio é, em sociedade com um irmão, o proprietário de um pequeno café, em Lisboa. Mas a sua pronúncia doce faz dele um homem da metade norte do País. Da zona de Arganil, fiquei a saber esta semana.
No domingo passado, pelas seis da tarde, o sr. Virgílio ficou sem qualquer possibilidade de comunicar com a sua família, na aldeia de origem. Nem telemóveis, nem internet, nem WhatsApp, nem nada. Nem mesmo as comunicações de outros tempos, um telefone fixo, um telegrama, um fax. Nem com a família, nem com os amigos, nem com o café central da sua aldeia. De um momento para o outro, o sr. Virgílio tinha regressado ao século XIX. Mas os sinais de fumo vindos do Centro e Norte de Portugal não anunciavam nada de bom.
Pelas 19 horas, meteu-se ao caminho, acompanhado pelo filho. Do lado de lá da barreira de fogo, algures na aldeia, estavam os pais e demais familiares próximos do sr. Virgílio, incluindo uma irmã e um cunhado, como ele proprietário de uma pequena empresa. Mortos, vivos, feridos, ilesos ou carbonizados? Não sabia.
Segundo o site Toponavi, a distância entre Lisboa e Arganil é de cerca de 191 quilómetros, em linha reta, que se estendem a 258 quilómetros e 830 metros, de automóvel, por estrada. Tal distância pode demorar a percorrer cerca de 2 horas e 40. Ora, tendo saído às sete da tarde, o sr. Virgílio e o filho só conseguiram chegar ao destino às 8 e 30 da manhã do dia seguinte, a tempo do rescaldo. A casa de família estava intacta. Os familiares, bem, mas irreconhecíveis, como zombies, com os seus olhos vermelhos e inchados. A pequena empresa do cunhado, apesar de se encontrar a distância considerável de qualquer tipo de arvoredo, destruída.
Foram, portanto, 13 horas e meia de viagem. O País estava cortado, bombardeado, destruído, em estado de cataclismo, sem comunicações nem vias de comunicação. O que me impressionou no seu relato, que, na sua habitual boa disposição, me contou entre sorrisos, foi esta parte, que não vimos em nenhuma televisão: uma viagem ao twilight zone. Não é o fogo: é a guerra. Por isso, quando Miguel Sousa Tavares, na SIC, comparou o “Estado falhado” português à Síria e ao Iraque, de uma certa forma, não estava a exagerar. Isto é o tipo de cenário que esperamos encontrar em qualquer destes dois países. Alguém tem de ter culpas ou, como prefere o primeiro-ministro, responsabilidades. E não é a Natureza.
Mas não foi só isso que me impressionou. Tocou-me o otimismo, o sorriso, a desdramatização e a naturalidade do sr. Virgílio. Como se lhe tivessem nascido os dentes neste tipo de situação. E o seu realismo: “O problema não são as casas ardidas. Eh, pá, chatice, ardeu a casa… Bem, na medida do possível, tenta reconstruir-se. O pior são as empresas. O ganha-pão. A riqueza empreendedora, os empregos que se perdem. Alguém tem de pôr mão nisto, imediatamente.”
No mesmo dia, Marcelo Rebelo de Sousa, numa verdadeira peça de filigrana política, interpelava o Governo: como, com o quê, com quem pretende dar a volta a isto. Com quem. Daí, partiu para o passo seguinte, responsabilizando o Parlamento. Só este órgão poderá decidir se quer ou não quer o Governo. Isto é: os partidos da geringonça devem assumir as suas responsabilidades e não deixarem que seja o Governo a fazer de único odioso. De uma certa forma, Costa revela o seu lado pragmático, ao aceitar, implicitamente as recomendações do Presidente. O primeiro-ministro cedeu muito, no que se passou a seguir, a começar na demissão da ministra e a acabar na indemnização, sem mais delongas, às vítimas de Pedrogão. Já que não o podes vencer, junta-te a ele: António Costa (e Carlos César, em declarações produzidas já esta quinta-feira) parece estar a tentar extrair o que pode aproveitar, para si, de “lado positivo” da intervenção de Marcelo.
Pelo caminho, o CDS anunciou a sua moção de censura, o que foi uma manobra ágil e oportuna, do ponto de vista de um pequeno partido de oposição. Aproveitando a momentânea confusão de liderança no PSD, Assunção Cristas lidera a agenda e faz os sociais-democratas irem a reboque. Não se percebe: afinal, Passos Coelho não está demissionário, apenas não se recandidata. Até às eleições internas, mantém intactos os seus atributos de líder da opoisição. Declarações suas posteriores à iniciativa dos centristas chegam tarde.
Dito isto, outra coisa se deve dizer: a forma como o CDS está a justificar a sua moção é populista e desonesta. Vejamos o argumento: “Quem acha que o Estado falhou, e que, tendo morrido 109 pessoas entre Pedrogão e este fim-de-semana, as falhas foram graves, e pensa que, por isso, o Governo deve ser censurado, vota a favor. Quem não acha que as falhas tenham sido graves, e que o Governo não merece ser censurado, vota contra”. Porque é que isto é desonesto e populista? Afinal, a generalidade dos portugueses concorda que houve falhas, que elas foram graves e que o Governo merece ser censurado. Mas o CDS joga com as palavras. Do ponto de vista parlamentar, “censura” significa “derrube” ou “destituição”. E, para o cidadão comum menos familiarizado com os procedimentos constitucionais, isso não é necessariamente claro. Ou seja, a censura, ao contrário do que o CDS quer fazer passar a uma opinião pública pouco esclarecida e emocionalmente afetada, não é um conceito de “preto e branco”.
Mais: achará o CDS que, no atual quadro, em que é preciso agir, e em que são necessárias decisões políticas, que até podem implicar imediatas mudanças no Orçamento para 2018, o derrube do Governo vai ajudar as populações afetadas? Ou que, neste momento de especial fragilidade, mas, também, de crescimento económico, e estando Portugal sob o radar dos mercados, no limbo entre o lixo e a reciclagem, a destituição do Executivo é, nestas condições, uma iniciativa patriótica?
O título desta crónica diz respeito a duas interpelações. Uma foi feita pelo Presidente da República. A outra pelo sr. Virgílio, do café. Considerando que:
a) A esquerda faz da defesa dos desfavorecidos a sua bandeira principal.
b) Não se vislumbram portugueses mais desfavorecidos do que as populações afetadas pelos incêndios;
c) Estas populações, não protegidas por associações sindicais ou outros grupos de pressão, carecem de poder reivindicativo;
d) O País continua a precisar de cumprir as metas orçamentais, vulgo controlo do défice;
e) O País deseja evitar o regresso ao procedimento por défice escessivo;
f) As consequências dos incêndios colocam-nos num cenário de guerra, tipo de situação em que população costuma ser convocada a uma espécie de “requisição civil”;
g) Os meios e os dinheiros envolvidos nesta reconstrução, bem como na mudança de paradigma da floresta portuguesa, ascendem a dezenas ou centenas de milhões de euros,
Está pronta a esquerda, em coerência com o seu ideário, a suspender, por dois anos, a reposição de rendimentos inscrita no Orçamento de Estado, fazendo reverter essa verba para a reconstrução nacional e para a proteção das populações mais desfavorecidas, incluindo cidadãos sem possibilidade de se sindicalizarem e em risco de desemprego?
Vislumbro uma objeção e até já a ouvi ao líder parlamentar do PCP, João Oliveira: este esforço não deve colocar em causa a tendência de recuperação de rendimentos inscrita no Orçamento, incluindo o descongelamento de carreiras na administração pública. Um Orçamento que prevê um défice de 1% tem a folga necessária para ser revisto em alta, com um aumento de meio ponto percentual. Talvez o PCP possa ainda invocar outro exemplo: quando a França, assolada por ataques terroristas, teve de preconizar dispendiosas medidas de emergência, Paris avisou que, nesta situação, se considerava desobrigada de cumprir o Tratado Orçamental.
Quem me dera acreditar nestes dois argumentos. Mas há dois problemas: por um lado, o tal “meio ponto” de aumento do défice deverá ser manifestamente insuficiente para definir e executar, com rapidez, um plano sério e eficaz. Bem dizia João Cravinho, esta quinta-feira, na TSF: “Remendos não chegam. É preciso um Orçamento do zero, ou um retificativo. É impossível endireitar a sombra de uma vara que está torta.”
O outro problema é que a França nunca teve uma tróika e, como diria o outro, a França é a França.
Pensem nisto.