O princípio da presunção de inocência está intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana perante o poder punitivo do Estado.
A máxima que processualmente se identifica com tal princípio corresponde à declaração de que todos os cidadãos são considerados inocentes até que se prove a sua culpa e tem como corolário que esta prova não cabe ao visado, mas antes à acusação ou ao tribunal no âmbito dos poderes de investigação oficiosa que lhe estão atribuídos.
Este princípio tem reflexos vários sobre o tratamento do arguido no decurso do processo, designadamente na aplicação de medidas de coação, na apreciação da prova, na exigência de indícios suficientes para que contra o mesmo possa ser deduzida acusação, no in dubio pro reo, entre muitos outros.
No que tange à opinião pública assistimos, nas últimas décadas, ao nascimento de uma democracia de opinião, fundada na transparência e visibilidade das instituições, a que acresceu o desenvolvimento, e a força, de uma comunicação social na qual as televisões privadas assumiram um papel preponderante, passando a coexistirem um novo tipo de jornalismo, o denominado “jornalismo de investigação” e um interesse público focado nas coisas do direito.
A mediação da comunicação social concede ao espectador a noção de que também ele está no domínio dos dados que lhe permitem fundamentar o seu próprio juízo sobre a justiça do caso concreto e, por tal forma, avaliar como o Tribunal cumpriu o seu ónus de administrar a justiça em nome do povo. Os casos judiciais são vividos pelo público no domínio das emoções, convicções e preconceitos e, por vezes, muito para lá do apelo da racionalidade.
A isto acresce uma apetência especial da comunicação social para os casos de justiça relacionados com matéria de natureza criminal, designadamente quando envolvem pessoas com relevância social nos domínios da política, do futebol, da economia, da finança, entre outros.
Assim que são realizadas buscas, efetuadas detenções ou ouvidos como arguidos, assiste-se a um circo mediático, com obtenção de declarações aos visados, aos advogados e às pessoas que supostamente terão conhecimento dos factos, naquilo que, aos olhos de quem assiste, se apresenta como um julgamento público.
Os próprios visados ou os advogados que os representam aproveitam o espaço mediático para apresentarem a sua versão dos factos, descredibilizarem a investigação e tentarem influenciar a opinião pública de que tudo não passa de uma “cabala”, de uma perseguição.
As audiências registam “picos”; os comentadores, muitas das vezes das relações pessoais ou profissionais dos visados, sucedem-se; a emissão televisiva prolonga-se por horas a fio!
No dia seguinte, todos os espectadores têm uma opinião sobre o assunto, todos se sentem habilitados a “decidir” quem é culpado ou inocente.
Quando estão em causa crimes de corrupção ou fraude fiscal aí a situação agrava-se porque os índices de perceção desses fenómenos criminais são elevados e, por isso, existe uma fome coletiva de que sejam castigados os prevaricadores.
Para a opinião pública não existe o princípio da presunção de inocência.
A opinião pública com base na informação que bebe dos órgãos de comunicação social, das redes sociais, das “conversas de café”, forma o seu veredicto no imediato, sem aguardar pela decisão do tribunal.
Por muito que o Ministério Público e os Tribunais prestem uma informação objetiva tal não impede o aproveitamento e desenvolvimento jornalístico da mesma e que a opinião pública com base na informação disponível forme a sua convicção.
O problema não radica, pois, nas violações do segredo de justiça, como alguns pretendem fazer acreditar, mas é antes uma consequência de um jornalismo de investigação cada vez mais interessado nos processos criminais, que procura a informação por todos os meios e muitas vezes sem limites, para quem a “presunção de inocência” não confere picos de share.
É no final de contas a contrapartida de uma democracia saudável onde a accountability coletiva é indispensável, isto é, que a comunicação social informe os cidadãos do que se passa na Justiça, de modo a que estes possam escrutinar o modo como funciona o sistema judiciário.
O importante é que o princípio da presunção de inocência continue intocável na sua sede própria – o processo penal e que aí o mesmo seja respeitado, como tem sido apanágio da justiça portuguesa.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.