1. Tínhamos uma reunião do nosso curso no sábado, 18 de outubro, em Coimbra. Na quarta, 15, mandei-lhe um email: curto e solidário, mas procurando afastar qualquer tom emocional, inadequado ou mesmo impróprio dado o seu grave estado de saúde, que eu confirmara por outras vias, após ele não ter atendido duas chamadas minhas. O que no essencial lhe queria dizer, da forma mais simples possível, era que todos na reunião o lembraríamos, sentiríamos muito a sua falta. E terminava: “Poupa-te, não respondas a este email”.
No dia seguinte a meio da tarde, com surpresa, satisfação e preocupação misturadas, recebi um telefonema seu, do (Álvaro) Laborinho (Lúcio). Com a voz sumida, falando baixo e tentando disfarçar o esforço para o fazer, já não internado, contou-me como estava, sem pormenores, sem uma imprecação ou um queixume. Pelo contrário, ele é que parecia querer “animar” o colega e velho amigo, que julgo supunha informado da gravidade do seu estado, embora não o deixasse transparecer. E logo uma história à Laborinho: falara com o seu editor, e também amigo, o Francisco José Viegas, e dissera-lhe ter duas notícias para lhe dar, uma boa e outra má – a boa é que já não estava internado no hospital, a má é que estava a escrever um novo romance…
2. Claro que não era altura para lhe fazer perguntas sobre o romance. Referi estar na Póvoa e a caminho da apresentação de um livro meu intitulado A Alma da Póvoa, que lhe iria enviar, até por ter matéria que indiretamente lhe “tocava”. E ele, confessando-se já cansado – “falar custa-me muito” -, ainda me disse, com um aparente sinal positivo e de esperança, esta frase de certo modo enigmática que não esquecerei: “Ontem já toquei piano com a mão esquerda”…
Poucos dias depois, quando lhe escrevia a perguntar o endereço para onde enviar aquele livro, recebi a triste notícia da sua morte. Tinha um cancro do esófago, por isso lhe custava muito falar. Mas até ao limite correspondeu ao que lhe solicitavam, em particular os imensos convites para intervir, como só ele sabia, sobre os muitos temas que lhe interessavam e dominava. Convidado como cidadão, como jurista e magistrado, como homem de cultura, em particular ligado ao teatro – e na última dúzia de anos talvez sobretudo como escritor, lá irei.
3. O Alma da Póvoa tem a ver indiretamente com o Laborinho porque um dos seus textos é sobre o Manuel Lopes (1943-2006), também referido em outros, uma figura singularíssima, que foi diretor do Museu, da Biblioteca, etc., e deixou à terra, à Câmara, os seus milhares de livros e até a sua casa. Casa onde desde há dois ou três anos, para um máximo de 20/25 pessoas por sessão, é representada uma peça sobre ele, ML. Que era anão, enquanto o Laborinho tinha cerca de 1,80 m. de altura – e interpretava excelentemente a “personagem” do Lopinhos, como lhe chamavam! Uma última (a)mostra do seu grande talento também como ator, da sua disponibilidade para tudo que tinha a ver com arte, cultura, cidadania; da sua humildade, no melhor sentido, durante as Correntes d’Escritas fazendo inclusive mais de uma representação por dia.
Outro dos seus interesses e talentos era na área da música e do folclore. Assim, no nosso tempo de Coimbra, foi dirigente do Grupo Universitário de Danças Regionais (GUDRE), onde aprendeu a tocar concertina e sobretudo era o bailador nº 1 do Vira da Nazaré, sua terra natal, onde era enormemente respeitado, admirado, popularíssimo.
4. E se falei nas Correntes d’Escritas, em que desde há anos era como escritor participante indispensável, recordo que três anos antes de publicar o seu primeiro romance, em 2011, já ali fizera a chamada “conferência” inaugural – depois de Eduardo Lourenço, Agustina Bessa-Luís, Nélida Piñon, Eduardo Prado Coelho, Marcelo Rebelo de Sousa…
Lembrei-me de em nome da organização, a Câmara da Póvoa, o convidar, não por já ter sido, por exemplo, o diretor do Centro de Estudos Judiciários, que deu a volta e marcou o início de uma nova época na formação de magistrados; e/ou o secretário de Estado e ministro da Justiça, que defendeu uma forma mais aberta, inteligente, “humanista” – e, assim, mais “justa” -, de a encarar nos seus múltiplos aspetos e setores. Tentando levar à prática o que para isso pudesse contribuir, o que ficou muito longe do que desejava, e não frutificando “sementes” que deixou: como infelizmente na Justiça por sistema tem acontecido, com as perniciosas consequências que se conhecem (sobre a sua ação no setor ler o artigo de Maximiano do Vale no nosso site).
Se não por isto, porque convidar então o Laborinho? Porque, embora sem esquecer o jurista e magistrado com atividade pública relevante, conhecia bem os seus outros dons e talentos. Entre os quais avultava uma capacidade rara de analisar e/ou discorrer sobre factos, acontecimentos, questões, a partir de ângulos e de uma visão diferentes; a capacidade de interrelacionar as coisas, problematizar, dar novas pistas para as apreciar ou mesmo iluminar. Sempre sabendo “dizer”, numa linguagem e de uma maneira atrativa, envolvente, que prendia a atenção e suscitava a empatia. Por isso, usando uma palavra frequente do Eduardo Lourenço nas nossas conversas, quando o Laborinho se lamentava dos numerosos compromissos que era incapaz de recusar, eu dizia-lhe: “Pois, tu és ótimo de paleio”…
5. Nas notícias sobre a sua morte – em Coimbra, a 23 de outubro, com 83 anos -, e posteriores artigos a seu respeito, é naturalmente muito recordado o ministro de um governo de Cavaco Silva, na primeira metade da década de 80; mas é pouco lembrado o ministro da República para os Açores, entre 2003-2006, nomeado por Jorge Sampaio. E se agora o saliento é pelo que fez, não por também nos Açores ser ministro, o que para mim não tem importância nenhuma, nem por ter sido escolhido por um Presidente socialista, e como Sampaio, o que já tem significado.
Pelo que fez, demonstrando que a relevância dos cargos depende também das pessoas que os ocupam. O cargo, muito contestado, era tido como uma inutilidade. Pois ele, Laborinho, promoveu um extraordinário Congresso da Cidadania, que teve sessões nas nove ilhas e nos 19 concelhos da região, com intervenções de destacadas personalidades de vários setores, seguidas de debate. Um Congresso sem paralelo mesmo a nível nacional, e agora lamentavelmente esquecido no que sobre Laborinho se escreveu nos próprios Açores!
6. Enfim, o (Álvaro) Laborinho (Lúcio) esteve empenhado e teve ação muito relevante em numerosas instituições, em cargos que ocupou, comissões a que pertenceu, etc. Da área do Direito à da intervenção social, da defesa dos direitos das crianças à educação, da autarquia da Nazaré ao CCB e a membro da comissão da Igreja para apurar os abusos sexuais do clero.
Mas, como indispensável, uma nota ainda sobre o escritor. Já publicara diversos livros na área do Direito, em alguns dos quais o pendor literário transparecia – em particular O Julgamento: uma narrativa crítica da justiça. Que é de 2012. E dois anos depois, com 72 anos, teve a coragem de se “estrear” mesmo como romancista. Fui necessariamente das primeiras pessoas a lê-lo, porque fui quem o “apresentou”. Intitula-se O Chamador e lembro-me bem do “autor”, com a sua inconfundível graça, dizer que “era um escritor com um futuro cheio de passado”… Fazia depender do acolhimento que tivesse essa primeira ficção o continuar ou não. E, como se impunha, continuou: mais quatro romances, e o que estava agora a escrever. Faz-nos muita falta, na tão rica diversidade de tudo e do todo que era.