Atravessar a porta de entrada da galeria da Brotéria, aventurando-se na escuridão das duas salas ocupadas por Rémiges Cansadas, exposição de Samuel Silva (SS) em torno de um poema de Daniel Faria (DF) [1971-1999], é em si um abandono consciente do caos turístico que se deixa lá fora, nas ruas do Chiado.
O chão encontra-se coberto por um emaranhado de cabos náuticos, escondidos por uma nuvem de fumo, qual nevoeiro junto ao cais. Num primeiro momento, silêncio. E dúvida é claro. Podemos avançar? É seguro avançar? Alguém virá dizer-nos o que fazer?
De repente, uma voz, como que saída do fundo de um búzio, onde se escuta o mar. “Porque esperas ainda tanto nada?”. Avançamos mais um pouco, à espera, sempre à espera. De mais um verso, de alguma indicação, de mais silêncio.
De tempos a tempos, a voz volta a cortar o ar. Os versos que se ouvem pertencem a O País de Deus, poema-objeto a partir do qual SS criou Rémiges Cansadas. Longo 40 metros, o texto escrito por DF em 1991, é em si mesmo um ato performativo, redigido sobre papel de caixa registadora envolvido por fio Norte, e oferecido a um amigo, dentro de um pote de barro tapado com uma rolha de cortiça, como presente do primeiro passo deste para o sacerdócio.
Na segunda sala, uma escultura de chumbo suspensa, cuja forma insinua uma cóclea [osso do ouvido interno] recorda o poder da escuta, do mergulho no silêncio, da forma desse mesmo silêncio, que se desenrola qual cabos náuticos no chão, simultaneamente indicando e dificultando o caminho.
Patente na galeria da Brotéria até 7 de setembro, Rémiges Cansadas é aquela que SS pensa ser a última instalação de um ciclo de trabalho que, desde 2021, tem desenvolvido em torno da poesia de DF.
A primeira vez que o artista foi atingido pelas palavras simples, mas simultaneamente “fortes como granadas” do poeta monge, que, morrendo aos 28 anos, deixou uma poderosa obra poética, foi pela voz do cardeal D. Tolentino de Mendonça.
O amor pelo que acabara de ouvir, acabaria por transformar-se, em 2021, nas instalações Escuto o Calcanhar do Pássaro, exposta na KubikGallery, no Porto, e Levitação, apresentada na Casa da Arquitetura de Matosinhos, e, em 2024, em Rémiges Cansadas, que completa um tríptico pautado pela materialização da palavra escrita.
Três anos após ter começado a dar forma à poesia de DF, e a poucas semanas do último dia de exibição de Rémiges Cansadas, SS conversou com o JL, partilhando a experiência única de ter tido acesso ao poema-objeto inédito que deu origem à última exposição, falando da relação que tem construído com a poesia de DF e com a forma quase sagrada com que o monge tratava a palavra escrita e declamada, e o papel que a espera, a ausência e o silêncio têm no mistério que ressoa em cada canto da Arte e da vida.
Rémiges Cansadas é a terceira exposição de um “tríptico” sobre Daniel Faria. Quando é que começou esta “relação de amor” com a sua escrita?
A primeira vez que li DF foi graças a uma entrevista do Tolentino de Mendonça, e apaixonei-me, evidentemente, pela profundidade e pela simplicidade de uma escrita que era económica e contida, no sentido das palavras, as quais funcionavam, ao mesmo tempo, como uma espécie de granadas.
Porém, sinto que conheci o Daniel antes de o conhecer. Isto é, nos anos 1990, ele era monge, e acabou por morrer, no mosteiro de São Bento de Singeverga, em Santo Tirso. Ora eu sou de Santo Tirso, precisamente de Singeverga.
A realidade daquela terra fez parte da minha infância, calcorriei aqueles campos, aquelas quintas, e, de algum modo, houve ali uma proximidade, uma coisa que passou pelo corpo antes sequer de ler os muitos versos do Daniel que falam desse contexto e dessa paisagem.
Como é que deste interesse inicial passou a quatro anos de trabalho em torno da obra de DF?
Fui conhecendo pessoas que conheceram o Daniel e uma delas era o Nuno Higino, que acabou por me convidar, sabendo do meu interesse enquanto artista, para uma conferência, em Marco de Canaveses, na data dos 50 anos do Daniel.
Aí descobri, com grande espanto, que, a partir de uma dada altura, DF fazia também colagens, começando a explorar uma dimensão plástica para lá da escrita e apeteceu-me vasculhá-la, ir mais fundo, descobri-la melhor. Senti que essa dimensão paratextual aproximava-o ainda mais de mim e do meu universo enquanto escultor e artista plástico.
Na preparação da conferência visitei o quarto de DF no mosteiro, onde contactei com imensos materiais, colagens e poemas-objeto que eram evidências da relação com a manualidade e plasticidade do Mundo, de um universo poético que extravasava das palavras para a matéria, para os objetos.
Todas as exposições do tríptico são sobre o poema O País de Deus?
Não. A primeira, inaugurada em 2021, na KubikGallery, no Porto, era sobre um poema chamado A Explicação da Escuta e a segunda, em 2022, na Casa da Arquitetura, em Matosinhos, era sobre A Explicação das Casas. Nesta segunda exposição foi quando eu comecei trabalhar com luz e fumo.
Gostei muito da experiência de trabalhar com estes “materiais não materiais”, cuja presença é percecionada pelo observador, mas não ocupam o espaço como outro material mais concreto. A terceira, agora, na Brotéria, acho que é uma decantação das experiências anteriores.
E foram, desde o início, pensadas como uma tríade, uma evolução?
Não, não havia nenhum plano prévio de iniciar um projeto com três momentos. Foi uma construção em tempo real, digamos assim. As coisas foram acontecendo naturalmente e em contextos que faziam setido. Eu acredito muito nisto, acho que os artistas operam nas circunstancias que lhes são dadas, de espaço, tempo, financeiras, e que as circunstâncias do momento devem ser vividas para uma resposta.
No caso de Rémiges Cansadas, nasceu tudo de um poema objeto de DF que o João Pedro Brito [para quem o poema foi escrito] me fez chegar, depois das outras duas exposições, para que eu escrevesse um ensaio sobre a prática artística multidimensional do Daniel.
Acabei por ficar com ele até surgir o convite da Brotéria, onde senti que todo o contexto expositivo, bem como o espaço em si, criaram o momento ideal para trabalhá-lo. Já vinha numa trajetória de criação de obras ou instalações a partir de poemas do DF e acabei por criar mais esta. Mas creio que será a última e fechará este ciclo.
Leu o poema todo?
Sim. Foi uma estirada de cinco ou seis horas. Aliás, o próprio título da exposição refere isso. Rémiges são as penas das aves responsáveis pelo equilíbrio e pelo voo. Rémiges cansadas remetem para um voo longo, que extenua, que por ser tão grande leva-nos para um lugar de cansaço.
O poema é um rolo imenso, de cerca de 40 metros de comprimento por seis centímetros de largura, que fala, entre muitas outras coisas, sobre a questão da espera, da ausência… Enfim, é tão grande e tão profundo que acho que só é possível resumir numa ideia de condição humana, do ser humano e da sua circunstância.
Como é que se acaba a escolher cabos náuticos para criar uma exposição sobre a condição humana?
Em Rémiges Cansadas há um diálogo muito forte não só com o poema, mas também com muitos dos cadernos que, entretanto, eu descobri, construídos pelo próprio Daniel. Todos eles estavam fechados com um fio, com muitas voltas, tal como no poema havia a ideia de algo muito bem fechado. Daí chegaram os cabos náuticos que estão no chão. Foi muito interessante ir a estaleiros procurar essas cordas que nos ligam ao mar, tema que, tal como o andar à deriva, no poema é muito visitado.
Ao entrarmos na primeira sala da exposição, vindos da rua, estes cabos e a escuridão obrigam-nos a parar um momento até conseguirmos avançar. A criação desta pausa foi intencional?
Sim. Rémiges Cansadas é uma exposição que acontece num espaço muito particular, em pleno Bairro Alto, no mês de agosto, com muita movimentação, acabando por ser uma espécie de bolsa de resistência a essa vertigem de movimento e pressa, uma instalação que constrói um lugar de espera e de desaceleração.
O chão irregular, com cabos náuticos, provoca o mesmo efeito, dificultando a entrada, e a alteração da luz, neste caso o obscurecimento da sala, obriga imediatamente a uma espécie de paragem quase involuntária. É um efeito que me agrada, porque acho que a arte também tem esse lugar, é um lugar de resistência, de paragem, não no sentido de imobilização, mas no sentido de oferecer um espaço para outro tipo de movimentos.
Que movimentos?
Que expandam a experiência para fora da mera fisicalidade do espaço. Ao longo da leitura, selecionei todas as perguntas que o Daniel faz no poema. Não consigo contabilizar, mas sempre que encontrava uma pergunta anotava-a e depois, dessas 30 ou 40, acabei por selecionar oito, que se ouvem na exposição, capazes de nos abrir a cabeça para outros lugares fora dali, e simultaneamente autónomas do contexto náutico do poema.
As perguntas afastam do contexto náutico, mas depois através das cordas e da escultura da segunda sala volta a aproximar-se dele.
É muito curiosa a forma como chego a essa escultura. Ela fala de uma ausência. Quando o João Pedro me confiou o poema, disse-me que faltavam só uns búzios muito pequeninos no fundo do pote onde o rolo se encontrava, que entretanto tinham desaparecido. Associo o búzio àquela coisa coisa meio infantil de escutar o mar.
Entretanto, por coincidência, descobri que um dos ossos do ouvido interno, a cóclea [representada na escultura], tem a forma de uma espiral, semelhante à de um búzio. Ou seja, dei uma forma à ideia de escuta e de búzio que eu tinha. Além disso, etimologicamente, a palavra cóclia significa caracol e isto agradou-me, porque o caracol está relacionado com a lentidão, quase como se fosse uma escuta lenta.
Qual a importância dessa lentidão do tempo no processo de criação artística?
Penso que há um tempo próprio para os trabalhos poderem aparecer em contextos propícios para isso. Quando um trabalho tem um tempo associado, há uma espécie de interferência, sentimos o tempo em nós. Acima de tudo, acho que o tempo e essa lentidão trazem-me outra capacidade de decisão. Se calhar há outros trabalhos em que a velocidade é uma qualidade.
De que forma é que esta lentidão é explorada em Rémiges Cansadas?
Se alguém vir a exposição muito rapidamente pode não ouvir nenhuma das perguntas. Apesar de este “falhar” das perguntas também me interessar, é a partir do momento em que chegamos a ouvir uma pergunta que tomamos consciência de estar a ocupar um silêncio. Ao ouvi-la, se calhar ficamos e esperamos uma próxima. Esse momento de espera, de pausa, é um momento de silêncio.
É nos momentos de espera que sentimos o peso dos silêncios?
Creio que sim.