Quando o mundo fechou as portas e janelas, em março do ano passado, a Maçanita Vinhos viu-se, como muitas outras empresas, com um problema em mãos: com 90% das vendas a serem feitas em restaurantes, as contas apontavam para uma quebra de 70% nas receitas, num ano que se esperava bom. Em duas semanas, foi preciso montar uma loja online e reposicionar a marca, para que os vinhos passassem a ser consumidos em casa dos portugueses. E era ainda preciso comunicar com o consumidor final, ao invés de com os distribuidores. “Eu tinha a função de enóloga. [Mas em 2006, quando nasceu a Maçanita Vinhos] fiz trabalho administrativo, fiz contabilidade, andei porta a porta a vender o nosso primeiro vinho, o Sexy; vendo barricas, às vezes tenho de estar na vinha a ajudar as pessoas… ser multitasking é condição para ser parte deste grupo”, sublinha Joana Maçanita com uma gargalhada. “No confinamento, conseguimos arranjar uma equipa que nos ajudou a criar todo o mundo digital: tinha uma pessoa na prospeção da exportação que esteve, durante duas semanas, a tentar descobrir como se montava uma loja online: condições, legalidades, transportes…Tenho uma pessoa de marketing que faz rótulos e etiquetas que teve de construir e de redesenhar sites. Isto tudo, com o meu espeto e do António [Maçanita] a tentar que todos fôssemos para a frente. Em duas semanas, lançámos uma loja online que foi uma das ferramentas que nos salvaram em 2020”, resume a empresária. É certo que agora está a ser refeita por uma empresa, mas quem está a liderar o processo, definindo as informações que a empresa precisa de recolher – seja a idade, o tipo de vinho que compra ou a região onde vive – é a mesma pessoa que aprendeu a fazer uma loja online em tempo recorde e que antes sabia nada de webdesign.
Eu tinha a função de enóloga. [Mas em 2006, quando nasceu a Maçanita Vinhos] fiz trabalho administrativo, fiz contabilidade, andei porta a porta a vender o nosso primeiro vinho, o Sexy; vendo barricas, às vezes tenho de estar na vinha a ajudar as pessoas… ser multitasking é condição para ser parte deste grupo
joana maçanita
Um exemplo muito simples do que já está a tornar-se óbvio no mercado: as competências pedidas aos trabalhadores, a partir de agora, não vão ser fundamentalmente diferentes das que eram pedidas até aqui, mas o seu peso na hora de decidir uma contratação ou retenção ter-se-á alterado. “Veja-se a adaptação do World Economic Forum para este ano, onde reparamos que a criatividade já era uma das dez principais competências pedidas, mas que agora sobe o seu nível de importância. Tal como a capacidade de resolução de problemas complexos e a agilidade”, sublinha por seu lado Inês Veloso, diretora de comunicação e marketing da Randstad Portugal. Isto aliado a um grau de digitalização elevado que Inês espera não se perder. Até ao Grande Confinamento, “estávamos mais focados na transformação digital ao nível dos processos, e a pandemia acelerou esta mudança na forma de trabalhar, ela que nos transportou para casa e nos trouxe esta necessidade de trabalhar remotamente. Conseguimos comunicar e ganhar um nível de confiança que em Portugal, em especial, tínhamos pouco”, sublinha a executiva. “Eu estou habituada a gerir as minhas pessoas quando as vejo, e a questão do remoto levanta estas questões: como manter a produtividade, como manter o engagement das pessoas. E não tenho a certeza se não vamos voltar atrás, porque todos temos necessidade de estar todos juntos, mas esta é a responsabilidade das organizações, é a nossa responsabilidade individual de pessoas que gerem equipas!”. Quanto ao digital, e a título de exemplo, “nós antes também dizíamos ‘esta televisão é ótima e é a cores’, até ao dia em que isto deixou de fazer sentido [risos]. Acho que este tema da transformação digital é: será que vamos todos para a transformação digital? Claro que sim. O tema é como vamos fazer o equilíbrio entre o humano e o digital, e como retiramos o melhor do digital e não fazemos dele o pior, ou porque não o incluímos ou simplesmente achamos que ele substituiu tudo o que é humano, e não é verdade!”.
O tema é como vamos fazer o equilíbrio entre o humano e o digital, e como retiramos o melhor do digital e não fazemos dele o pior, ou porque não o incluímos ou simplesmente achamos que ele substituiu tudo o que é humano, e não é verdade!
inês veloso
A ideia é secundada por Joana que recorda o seu trabalho, ligado ao mundo agrícola, onde o digital é algo bastante diferente do que se perceciona no setor dos serviços. Nas vinhas onde cresce a matéria-prima, a digitalização pode chegar por via de aplicações que ajudam a gerir calendários, turnos de funcionários ou horários de maquinaria, mas são as pessoas que podam, tratam, acompanham e garantem que o produto final é de qualidade. “Eu concordo com a Inês, com o facto de já não se questionar o digital, mas há muitas pessoas que fazem parte da nossa comunidade e que não acreditam que o digital veio para ficar, porque nem sabem bem o que é”, recorda.
Quando lhe pedimos para explicar como foi passar para plataformas como o Instagram as provas de vinhos, geralmente feitas nas propriedades que detém, numa das adegas ou pelo menos com vista para as vinhas, a enóloga sorri e esclarece: “Claro que provar online não tem nada que ver com a prova junto das pessoas, ao vivo e a cores. Mas eu e o meu irmão António quisemos, com o confinamento, fazer companhia às pessoas. Somos ambos enólogos, damos muita formação e é óbvio e normal para nós fazermos este trabalho. Dar conhecimento, partilhar conhecimento. Então, decidimos fazer uma coisa chamada Mano a Mano, em que, de uma forma descontraída, provamos vinho [previamente selecionado e que as pessoas compram e recebem em casa]. As pessoas têm aderido de uma forma incrível. Algumas acabam a dançar em cima do sofá [risos]. E fazem perguntas relevantes: como é produzido o vinho branco? Como se guarda? Para que momentos? Agora, acho que todos queremos ter o que tínhamos. Não acho que haja nada que nos dê mais centro do que sermos o que sempre fomos. Mas isto é uma oportunidade gigantesca para criar algo que não tínhamos criado antes.”
O “tema de literacia digital existe nas organizações e tem de ser desmistificado”, anui Inês. “Não estamos a dizer e não podemos ter essa ideia de que todas as funções vão ser digitais. Não o vão ser, não o podem ser, não queremos sequer que o sejam, até porque o que queremos é que a tecnologia substitua tudo aquilo em que o humano não acrescenta valor”, esclarece.
Adeus, funções; olá, experiências
Para ambas, é precisamente aqui que entra a criatividade, a capacidade de resolver problemas e o poder de encaixe, em funções que mudaram por força das circunstâncias. Para Inês, mais do que as profissões, o que vai acontecer é que a célebre frase “isso não faz parte das minhas funções” vai começar a desaparecer. Num cenário em que o digital pode substituir de forma incomparável os humanos em tarefas mecânicas e analíticas, “temos de continuar a pensar nas competências necessárias para a estratégia de negócio e como posso trazê-las para as pessoas que eu tenho hoje na organização”. Mas, apesar disso, avisa, a formação contínua deixa de ser uma responsabilidade apenas da empresa, numa altura em que os trabalhadores já perceberam que ela será fundamental para continuar a crescer dentro das organizações ou na procura de outro desafio profissional. “Vamos mudar o conceito de trabalho. Aquela ideia de que tirei o curso de jornalismo, de que vou ser jornalista de imprensa… essa capacidade de te adaptares vai ser fundamental. As tendências do teu consumidor fazem com que tenhas de adaptar-te para fazeres passar a mensagem, que é a mesma, mas a forma de transmiti-la tem de mudar”, atira em jeito de explicação.
“Acredito que vamos deixar de ter funções para cada vez mais termos experiências de trabalho. Vamos ter de nos adaptar ao que são mudanças de contexto. E é só olharmos para as empresas que mudaram o seu core, porque o seu core não tinha caminho. Pensar em fazer um direto no Instagram para uma prova de vinhos não fazia qualquer sentido”, ri-se Inês. “Mas esta capacidade de adaptação e esta criatividade vão ser competências que nos farão adaptar às necessidades do mercado, porque a criatividade é a menos replicável” pelo digital e porque, acima de tudo, lembra Inês, as pessoas não são contratadas apenas pelo seu currículo. “Se isto fosse sobre CV, eu não trabalhava na Randstad, porque ela não existia”, diz com uma gargalhada. “Não havia recrutamento de recursos humanos. E não há nada mais entusiasmante e espetacular do que ver alguém que tem um background totalmente diferente a ser muito bem-sucedido numa área que o apaixona. Isto não é 1+1=2. As pessoas vão ser, garantidamente, aquilo que fará a diferença. Não há nenhuma app que substitua ou que elimine de uma vez aquela capacidade de surpreender os outros e também a nós próprios”, reitera.
Educar para criar?
Chegadas aqui, era incontornável abordar o tema da educação e de como esta pode fazer a diferença nestas necessidades que o mercado vai passar a pedir, agora ainda mais do que dantes. “A educação é um assunto um bocadinho polémico”, sorri Joana. “Cada pessoa tem a sua visão do que acredita. Não somos especialistas, e a minha opinião é como mãe. Acho que existe um ensino moderno que tem coisas absolutamente fantásticas, e muitas escolas privadas no nosso país já têm essa conduta. Mas também sabemos que se ensinarmos uma criança que trabalhar e estar concentrado é importante e que, mesmo que a Matemática seja difícil, temos de ultrapassar o obstáculo, isso tem efeitos positivos. Claro que temos de explorar a criatividade de um miúdo que pode não ser tão talhado para a Matemática. Mas como se faz isto com 26 miúdos numa sala? Não sei. Eu sou uma pró-ensino clássico, porque acho que o resto pode ser desenvolvido em casa. E sinto que esta pandemia ainda empobreceu mais o ensino clássico. Quem usa ferramentas mais modernas e atuais estava mais preparado – como o Park [International School], que é quase pró-empresa, que tem uma educação muito neste perfil pró-mundo, pró-tudo. Estas crianças que estão em casa com esta escola provavelmente estão muito melhores do que os meus filhos que estão no ensino público…”, reflete. Para Inês, o problema divide-se em dois. Por um lado, a necessidade da educação dita moderna, “que vem trazer alguma criatividade mas que, depois, afunila numa forma de avaliação tradicional. O miúdo pode ser muito criativo mas terá de fazer o exame de Português na mesma, no final”, avisa. “E isto tem de ser resolvido.”
Lembremo-nos de que “80% do nosso trabalho é rotina, e não num sentido pejorativo, mas é nos outros 20%, onde vamos fazer diferente, que vamos influenciar aqueles 80%: todos os dias tenho de encontrar motivação e propósito. E estas têm de ser as ferramentas que damos às crianças e aos jovens para eles serem curiosos… As crianças são curiosas por natureza e fazem muitas perguntas, e nós com a idade vamos perdendo isso. Dito isto, temos pessoas muito bem-sucedidas que estiveram sempre no ensino particular e pessoas bem-sucedidas que estiveram sempre no ensino público – claro que os bons professores ajudam sempre. Mas temos de manter a capacidade de sermos curiosos, de criar, de agilização”, defende.
Para ambas, foi precisamente a curiosidade, a proatividade e a capacidade de resposta que a pandemia veio estimular. E se Joana acredita que não há volta a dar neste caminho – “eu, que sempre achei que não era criativa, estive a fazer lojas online e estratégias de marketing. E o que eu sabia era sobre espécies de árvores e de animais… mas ter esta capacidade de reinventar-me e de superar objetivos” foi surpreendente e estimulante.
Já Inês mantém-se mais cautelosa, sobretudo tendo em atenção a “continuidade e fadiga e pressão que existem nas próprias empresas, atualmente. Vamos passar por despedimentos coletivos, aumentar o nível de desemprego, vamos ver processos de humanização que terão dificuldade em ser continuados”, admite. Mas reconhece também que é a oportunidade para as organizações se lembrarem de que essa humanização deve ser parte do processo alargado de trabalho, porque, recorda, quando “eu despeço alguém numa organização, todas as pessoas passam a ter mais medo de serem despedidas. O despedimento não afeta só quem sai, mas também quem fica”, recorda.