“Eu só quero ser feliz.” Certo. E o que significa isso, exatamente? É bem provável que lhe ocorra o “Não te preocupes, sê feliz”, lema atribuído a um guru espiritual indiano e título da canção que o músico americano Bobby McFerrin imortalizou, dado o sucesso esmagador que teve nos anos 1980.
Na década seguinte, o psicólogo americano Martin Seligman fundava a Psicologia Positiva, centrada no treino mental para uma vida mais plena, e a Organização Mundial de Saúde abria o milénio com uma definição de Saúde Mental: mais do que a ausência de doença, ter bem-estar individual doença equivale a estar bem fisicamente, adotar comportamentos salutares, desenvolver competências emocionais para enfrentar situações stressantes, ser produtivo e contribuir para a comunidade. O que, até então, não passava de questões menores, começou a ser levada a sério na comunidade científica e fazer parte das políticas de saúde públicas.
Muitos estudos depois, vieram os programas de inteligência emocional e de educação para o otimismo, nas escolas e nas empresas. Hoje, no mundo interligado e confrontado com crises de toda a ordem, a ideia de sentir-se bem tornou-se pequena, redutora até, colocando novos desafios à Psicologia Positiva.
Trazer o vilão para a mesa
Num artigo científico publicado em junho, na International Review of Psychiatry, o psicólogo irlandês Michael J. Hogan chamou a atenção para a importância decisiva das emoções negativas – tristeza, culpa, vergonha, raiva ou ansiedade – na equação da felicidade, que ganha uma dimensão mais abrangente. Basta pensar nos primeiros meses da pandemia: o “vai ficar tudo bem” foi perdendo expressão e sentido.
O consumo de antidepressivos e ansiolíticos disparou, a economia e as questões climáticas “adoeceram” e, neste novo cenário, sentir-se bem, ou feliz, a título individual, assume contornos ficcionais, ou pouco realistas. E aqui entra a chamada segunda vaga da Psicologia Positiva (ou 2.0, fazendo lembrar a designação “web 2.0”, que marca a era das redes sociais): problemas coletivos pedem respostas colaborativas e uma revisão da ideia de bem-estar, mais sustentável. E como é que isso se faz?
A nova ordem da felicidade
O modelo da psicologia positiva 2.0 pressupõe que ser feliz é muito mais do que sentir-se bem e passa por um nível de satisfação mais profundo.
O modelo da psicologia positiva 2.0 pressupõe que ser feliz é muito mais do que sentir-se bem e passa por um nível de satisfação mais profundo. À dimensão do bem-estar, somam-se a resiliência, a virtude e o significado.
Com estas novas coordenadas, quatro perfis são possíveis: os chamados “felizes”, que se agarram às experiências positivas e desvalorizam as outras; os que são apelidados de “infelizes”, incapazes de sentir-se bem ao fecharem os olhos às circunstâncias complexas e duras que testemunham; os “pessimistas”, cuja visão de si e do mundo é negativa (os mais propensos a problemas de saúde mental); e aqueles que poderemos chamar “positivos”, na medida em que conseguem, simultaneamente, sentir-se bem e nutrir empatia pelo que de mal acontece a outros sem ficarem indiferentes.
O último grupo é o que está melhor equipado para lidar com questões complexas, que afetam a todos, e não podem ser resolvidas senão com recurso a uma inteligência emocional, menos orientada para o sucesso e mais centrada na cooperação e na aprendizagem conjunta.
Num artigo publicado em julho, na Psychology Today, a psicóloga Susan Krauss Whitbourne, doutorada em neurociências pela Universidade de Massachusetts, aplaude a emergência de uma outra mentalidade, mais consentânea com os tempos incertos e marcados por vicissitudes que merecem, mais do que nunca, a nossa atenção. Neste cenário, parece ter cada vez menos lugar ou sentido o “não te preocupes”.
O novo paradigma implica realizar alterações profundas, tanto nas formas como nos organizamos como no plano da liderança. Por exemplo, já não é credível continuar a pensar que prevenir o stresse associado à conciliação entre trabalho e família ou encontrar soluções inovadoras e solidárias é algo que se faz isoladamente. Ou sem levar em conta o que está a passar-se ao lado, por mais difícil, doloroso ou aterrador que seja e nos afeta a todos. Em última análise, a sobrevivência da espécie depende disso.
Não há certo nem errado
O interesse pela compreensão e integração do nosso lado menos sorridente, ou mais sombrio, não é propriamente uma novidade. Há precisamente um século, Sigmund Freud, o criador da Psicanálise, chegou à conclusão de que precisava de rever a sua teoria do instinto. Na obra Para Além do Princípio do Prazer, o psiquiatra austríaco avançou a hipótese da pulsão de morte e a coexistência de Thanatos (a agressão e a morte) e Eros (o amor e a vida) na psique humana: para que este prevalecesse, era crucial não deixar o outro à porta.
Carl Jung, discípulo de Freud – que este admirava mas acabou por cortar relações, devido a uma violenta disputa entre ambos por divergências teóricas – trouxe igualmente um contributo inovador às teorias da personalidade que hoje são valorizadas nas áreas do pensamento estratégico, do coaching e da psicoterapia. São do psiquiatra suíço os conceitos “inconsciente coletivo” (comportamentos, sentimentos e impressões absorvidas no ambiente familiar e social e moldam a nossa essência, ainda que não tenhamos consciência deles) e “lado sombra” (as nossas facetas indesejáveis e obscuras, que rejeitamos e tendemos a atribuir a outros, de forma inconsciente).
Citações suas que se tornaram populares – “Até tornares o inconsciente consciente, ele vai dirigir a tua vida e a isso chamarás destino” ou “Conhecer o teu lado obscuro é o melhor método para lidar com o lado obscuro das outros” – apelam à necessidade de nos conhecermos na unidade, na plenitude, sem dicotomias nem exclusões.
Ilustrado pelo símbolo Yin Yang, da tradição oriental, o equilíbrio entre opostos está presente na natureza e parece ocupar, finalmente, o seu lugar na psicologia moderna. Paul Wong, fundador e presidente da Terapia do Significado, conceptualizou os quatro princípios da Psicologia Positiva 2.0.: aceitar a realidade como é (sofrimento e maldade incluídas), transcender o lado sombrio da vida, encontrar um ponto de equilíbrio na dualidade e experimentar alegria profunda nas situações mais horrendas. Tais princípios foram inspirados em várias fontes de saber, onde cabem conceitos da psicologia chinesa, ensinamentos budistas e fortes influências das teorias existencialistas, como refere num artigo publicado no seu site.
O psicólogo clínico, professor e mentor da International Network on Personal Meaning defende que só podemos podemos transformar aquilo a que reconhecemos existência e aceitamos. A Psicologia Positiva entra assim num outro nível: na psicoterapia e na vida, a consciência das emoções mais indesejáveis, especialmente em momentos de crise, é a base para o desenvolvimento e o florescimento humanos.
Nas suas palestras e workshops internacionais, Wong rompe com dogmas e, munido de evidências científicas, propõe a pessoas e organizações novas formas de se aproximarem e cultivarem laços produtivos, sem divisões teóricas e ao serviço de um bem maior: a saúde mental global. O seu lema: “O significado é tudo o que temos, o relacionamento é tudo o que precisamos.” A felicidade passa por aí.