Desde segunda-feira, dia um deste estado de calamidade, e o início de um ponderado desconfinamento, que voltou o arrumador de carros no largo da Igreja – está de máscara, mas baixa-a sempre que se aproxima de alguém na pedinchice das moedas. Ele e todos os que pedem dinheiro à porta do agitado mercado são a face mais visível de que a vida teima em voltar à normalidade. Estas sobrevivências dependem de haver pessoas a circular e quantas mais, maiores as probabilidades de se conseguir uns trocos por dia.
Por outro lado, se há pessoas mais bem penteadas ou de cabelo melhor aparado, é muito difícil de assegurar. Por aqui, como um pouco por toda a parte, veem-se sobretudo máscaras e o ar triste com que ficamos quando escondidos por trás deste acessório que nos protege do vírus. O olhar ganha agora toda a expressão de um rosto que se pode apenas adivinhar. Em alguns casos, as viseiras aliviam esta sensação, mas parece que não são tão seguras. No talho do Alcides, que nunca chegou a fechar, todos atendem assim, de cara à vista, por trás do balcão.
Já nos muitos cabeleireiros do bairro, nem se brinca. As portas escancaram-se para a rua, há muitas cadeiras livres e agendas cheias de marcações. Gel e luvas no balcão de entrada, alguma tensão e dificuldades em gerir quem entra e quem tem de sair, como é o caso de uma filha que leva a mãe, velhinha, pelo braço, para o seu embelezamento.
No cabeleireiro Augusta, que funciona no bairro há muito mais que 30 anos, atendem-se duas senhoras. Uma delas já está de cabelo pomposamente armado, a levar as últimas de mão, a outra está no longo processo de um alisamento. Tudo de máscara, já nem é preciso anotar isso, e muito usa-e-deita-fora, além de uma higiene reforçada. “Já tínhamos por hábito recorrer a materiais descartáveis, agora temos de nos centrar na educação das nossas clientes. Nós também estamos a adaptar-nos a esta nova realidade”, nota Mira Ferreira, 54 anos, uma das duas sócias, que durante os quase 60 dias em que se mantiveram de portas fechadas, não tiveram direito a nem um cêntimo do Estado, por serem proprietárias.
Apanhamos Ilda Martins Ferreira, 73 anos, a abrir a porta da sua loja de roupa de tamanhos grandes, na Avenida Rio de Janeiro, onde trabalha desde 1983. Vive a dois passos literais daqui e ainda não tinha arranjado coragem para se expor ao contacto com o público, mas como a loja é sua pode gerir bem a coisa e até os horários em que está aberta. “Sou grupo de risco”, avisa, antes de colocar a máscara para vir até à nossa beira. E nem é só a idade que a eleva a essa categoria, junta-se também a Diabetes e a hipertensão. “Tenho aqui gel e, por isso, as pessoas podem mexer nos artigos, depois de desinfetarem as mãos. Quanto a experimentar a roupa, já não sei bem o que dizer, mas o ideal é que comprem sem o fazer.” Os manequins da montra vestem roupas primaveris e nos cabides os modelos cheiram a calor – Ilda já recebera esta coleção em finais de fevereiro, mas ainda não a tinha posto à venda.
21 euros num dia comprido
Há perto de uma dúzia de táxis na praça que fica perto do mercado. Os motoristas confraternizam, mais ou menos distantes, para disfarçar a falta de clientes e os poucos euros que levam para casa no final da jornada. Raul Dias, 74 anos, passou todo o Estado de Emergência metido em casa, mas agora que o Governo aliviou o nosso confinamento, decidiu regressar ao serviço, no seu carro, porque já não aguentava a reclusão. No dia anterior, depois de 15 horas a tentar apanhar pessoas para as transportar, fez 21 euros, quando, num dia normal, teria conseguido 80 ou 90. E hoje, a meio da manhã, contabiliza apenas €3,65, numa ida daqui até ao colégio Valsassina.
No automóvel, em terceiro lugar na fila, tem uma máscara, desinfetante para as mãos e para os assentos – tudo atirado para o banco do morto, junto com o jornal mais lido pelos taxistas. “Pulverizo o interior três a quatro vezes por dia”, garante, depois de muito insistirmos com a pergunta.
Daqui, avistam-se as obras na Avenida da Igreja, num dos passeios, assinaladas por grades amarelas para proteger quem passa. A agitação de máquinas e trabalhadores é muita e dá um toque de normalidade a esta manhã. Isso e os carros parados em segunda fila, com piscas a avisar que não se demora. A polícia municipal multa uma condutora e diz não saber se a EMEL ainda está a deixar estacionar sem cobrar. Na app da empresa confirmamos que sim, que por enquanto, Lisboa é de graça. Não fora as filas para se entrar no banco, no mercado, na farmácia e nem nos lembraríamos da calamidade. Bom, e as máscaras, claro.
“Malas de viagem? São para esquecer”
Alvalade está cheia de comércio tradicional, pequenas lojas familiares, com as medidas certas para esta primeira abertura, muitas em mão de pessoas que agora se incluem no grupo de risco. Se por um lado podem reiniciar a atividade, pela dimensão, por outro, a idade de alguns donos faz com que se mantenham resguardados. De qualquer forma, diríamos que 70% do comércio está a funcionar, se considerarmos os restaurantes em take away. Até há caracóis (e caracoletas) para comer em casa – só no último fim de semana prolongado venderam-se 150 quilos deles, a €7,5 a travessa, num dos sítios que antes preenchia as mesas de pratinhos, palitos e imperiais.
A Globo Malas só tem a registar 20 euros de um porta-moedas, mas também acaba de abrir, para ver como correm as coisas. A empregada Paula Pinheiro, 48 anos, de viseira, terminou a limpeza da loja e de engalanar a montra para chamar mais gente. Esteve este tempo todo em layoff a 100% e agora passou para metade, porque a loja, que está na mesma família há 72 anos, abrirá apenas das 11h às 16h. A proprietária é de risco e por isso não vem atender os possíveis clientes, que podem mexer no que está exposto, desde que usem luvas. “Não temos artigos de primeira necessidade e malas de viagem, que seria agora o artigo mais popular, são para esquecer.”
Para aqui chegar, Paula apanhou o comboio, desde Santa Iria da Azóia, a norte de Lisboa, que vinha vazio, até porque, com as novas horas de abertura, foge das enchentes matinais. Em casa, ficou o seu filho único, de 12 anos, sem controlo, agarrado aos jogos, vaticina ela, com ar resignado.
Pela Avenida da Igreja abaixo, vemos muitas lojas a anunciarem saldos. Algumas mantêm ainda as portas fechadas, outras nunca se fecharam, e tudo o que seja restaurantes ou cafés só receberão clientes a partir de dia 18 de maio.
“Prazer em vê-la”
A retrosaria Marquesa atende agora uma cliente que, na verdade, já só está aqui à conversa, porque a isso se habituou desde sempre. “Prazer em vê-la”, despede-se dando sentido real a esta frase feita. Já não via Ivone Gil, 73 anos, desde que o pequeno comércio se viu obrigado a fechar, até porque os clientes deixaram de vir, e isso, a brincar, a brincar, já foi quase há dois meses.
Em dois dias e meio de abertura, esgotou-se o elástico. “Ontem pedi dois quilómetros dele a Espanha, mas como os armazéns lá estão a funcionar a meia haste, não sei quando chegará a minha encomenda”, conta José Gil, 80 anos bem conservados e nem uma viseira para o proteger (só para a fotografia). Nunca se viram na necessidade de importar este produto, apesar de terem ainda em stock outras cores e outras larguras, mas os que servem melhor as máscaras foram-se num ápice. Também têm vendido muito tecido e agulhas para a máquina de costura. “As pessoas põem-se a coser e não sabem funcionar bem com aquilo e depois estragam as agulhas”, nota Ivone, com um sorrido malandro, relevado pelo acentuado franzir dos seus olhos.
As pessoas metidas em casa não gastam solas. É a essa conclusão a que os irmãos Cardoso, de 57 e 48 anos, estão a chegar, depois de dois dias de sapateiro aberto e de terem tão pouco trabalho – a primeira vez que se sentem assim, em três décadas nesta loja. De volta do conserto de uma mala, no mesmo balcão de sempre, João defende-se numa viseira e explica que a fita de plástico vermelha e branca está aqui para afastar os clientes dos bancos onde antes se sentavam à espera dos seus arranjos.
Mais à frente, os arranjos são de cadeiras. Depois, continuando a vaguear pelo bairro, encontram-se lojas de decoração a voltar à vida, outras que, já se adivinha, não abrem as portas nunca mais. E relojoarias, stands de automóveis, sapatarias, lojas de tecidos, bugigangas. Em Alvalade, realmente, há de tudo um pouco, mas por enquanto ainda não se pode frequentar o Clube Atlético nem o recente Wave Factory, dedicada ao surf indoor.
E às Finanças, afinal, só com hora marcada, como sempre aconteceu neste confinamento. Tocar à porta desta repartição, mesmo em frente a uma das muitas igrejas alternativas que existem nesta zona de Lisboa, é ser recebido por um senhor algo incomodado por estar a ser, de novo, interrompido no seu trabalho. Não tem clientes de momento, mas também não é por isso que poderia atender quem aqui chegasse sem agendamento. As normas são estas e devem ser cumpridas, tal como todas as outras que fazem parte deste tímido desconfinamento.