Juntos, Germano Silva e Hélder Pacheco são séculos de sabedoria e milhares de páginas rabiscadas e impressas sobre o Porto. Conhecem-no até pelo avesso, à sombra ou ao relento. E não há o mais pequeno apeadeiro dos caminhos históricos da cidade que lhes passe ao lado. Acumulam e protegem saberes populares, ancestrais, e um conhecimento metódico, calcorreado, dos picos e declives das gentes que garantem, todos os dias, a perpetuação das memórias da Invicta. Ora, quem melhor do que esta dupla de investigadores, cultores e amantes obsessivos do Porto e das suas muitas gentes e geografias, para nos desmontar os mitos e realidades da festa mais celebrada da cidade, que este ano talvez junte uma das maiores massas humanas da sua história?
1 – Como e quando começou a celebrar-se o São João?
É a pergunta que muitos fazem. Mas, “em boa verdade, ninguém sabe”, garante o jornalista e escritor Germano Silva. A mais antiga referência que se conhece à festa do S. João do Porto está numa crónica de Fernão Lopes, do século XIV, do tempo do rei D. Fernando. “O cronista chegou ao Porto no dia em que estava a festejar-se determinado acontecimento com um entusiasmo desabrido”. Era o São João. Contudo, a tradição de celebrá-lo “deve ser bem mais antiga”, pois existe uma canção popular que diz “…até os moiros da moirama / festejam o S. João…”.
2 – São João, o dia das decisões
Mais do que uma festa, o São João é, desde tempos muito antigos, um dia importante para a cidade. Segundo Germano Silva, “era – e ainda é! – nesse dia que a Câmara reunia excecionalmente para tomar as resoluções mais importantes para a cidade”. Na véspera do dia do santo – que, note-se, não é o padroeiro da Invicta – a edilidade mandava “lançar pregão” pelas ruas a convidar os cidadãos a participarem na reunião. “Pelo São João, elegiam-se os representantes do povo na autarquia. As reuniões faziam-se então no claustro do mosteiro de São Domingos, por ser o sitio mais amplo e por nele caberem todos”. Dúvidas? O Hospital de São João foi inaugurado num dia 24 de junho (neste caso de 1959), o mesmo acontecendo com o Mercado do Bom Sucesso, a Ponte da Arrábida e o atual edifício dos Paços do Concelho.
3 – Sardinhas assadas fazem parte da tradição?
Era bom, não era? A verdade, porém, é outra. Segundo Hélder Pacheco, trata-se de uma moda importada de Lisboa. “As sardinhas vieram para o Porto na década de 1940, com a realização da primeira Feira Popular, no Palácio de Cristal”. Até aí, a tradição da véspera de São João era outra: “Comiam-se torradas à meia-noite e bebia-se café com leite”. No dia seguinte, ia à mesa o anho assado com batatas, em assadeira de barro.
4 – Uma festa sem doce?
Outro mito que perdura é o de que não existe, tal como no Natal e na Páscoa, um doce alusivo a esta época de euforia portuense. Pois bem: existe e recomenda-se, tendo até voltado a ganhar força nas últimas décadas no comércio e na restauração local. “Pelo menos desde o início do século XX que está documentada a existência de um Bolo de São João, provavelmente mais antigo”, refere o investigador, escritor e cronista da cultura e das tradições populares do Porto, Hélder Pacheco.
5 – O fogo sempre foi na Ribeira?
O grande fogo da noite de São João nunca foi na Ribeira portuense, mas sim na Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, defronte das Fontaínhas, na outra margem do Douro. Só dias depois se realizava o grande festival de fogo, tendo as ribeiras das duas cidades como cenário. O fogo-de-artifício atual é, segundo Hélder Pacheco, “uma invenção pós-25 de Abril para Presidente da República ver”.
6 – Um mergulho contra as doenças?
Tomar banho nos rios ou ribeiros na manhã do dia de São João, antes do nascer do sol, é costume antigo. Que prevalece entre os mais afoitos. Reza a lenda que, quem assim fizer, fica imune a doenças durante um ano. “Quando, nos finais do século XIX, se introduziu a prática dos banhos de mar, as banheiras da Foz, numa bem-sucedida operação de marketing, garantiam que nos rios a imunidade era garantida por um ano, mas só os banhos tomados na praia do Ourigo (Foz) imunizavam por cinco anos”.
7 – Um São João ou três?
Houve um tempo em que a conflitualidade política (e de regime) multiplicou os festejos. Nos finais do século XIX havia, pois, três celebrações do São João na cidade: o de Cedofeita (Miguelista), o da Lapa (Constitucional) e o do Bonfim (Republicano). “As cantigas desse tempo andavam carregadas de segundo sentido ou «recados»”, recorda Germano Silva. Exemplos: depois da vitória do Liberalismo, as pessoas cantavam coisas deste género: “O S. João de Cedofeita / mandou dizer ao da Lapa / que dissesse ao do Bonfim / que a coisa não ficava assim…Os miguelistas mandavam dizer que as coisas ainda podiam mudar…”.
8 – As marchas eram rusgas?
O Porto e arredores nunca tiveram desfile de marchas populares. “Jamais!”, reforça Hélder Pacheco. “As marchas são uma invenção do Secretariado Nacional de Informação, do Estado Novo, que contaminaram todo o País, Porto incluído”. A capital e a Invicta tinham, isso sim, as rusgas, “grupos do povo com tocatas que se deslocavam aos lugares de festa”. No caso do Porto, iam às Fontaínhas.
9 – O centro dos festejos era onde?
O S. João das Fontainhas, ainda hoje considerado a “Meca” dos festejos, é de criação relativamente recente em termos históricos. Data de 1869. “Neste ano”, conta Germano Silva, “um morador do local mandou construir uma monumental cascata. À volta dela, montou pequenas tendas onde se vendia cabrito assado, café, vinho, arroz doce e pão com manteiga”. Na verdade, a “coisa” pegou e as Fontaínhas tornaram-se passagem e destino dos romeiros do São João. De resto, os “centros” dos festejos foram mudando à medida que a cidade crescia ou se expandia do ponto de vista urbanístico.
10 – Festa religiosa ou pagã?
É este, desde sempre, o grande mito. Mas não há dúvidas: o São João é uma festa pagã. Até às entranhas. Por esta altura, explica Germano Silva, “os nossos antepassados colhiam os frutos da terra, arrecadavam o pão nos celeiros e o vinho nas adegas e davam graças aos elementos da natureza que tinham tido intervenção direta na abundância”. Para Hélder Pacheco, trata-se mesmo da “maior festa pagã”, apesar de a Igreja ter tentado fazer do São João e de outros cultos semelhantes “uma apropriação inteligente e sensível”, assegura o escritor.
Os velhos rituais, porém, sobreviveram todos: fogueiras, banhos, orvalhadas, plantas, ver o nascer do sol, etc. “Ainda hoje os balões e as fogueiras têm a ver com o culto do sol, assim como os foguetes e os rituais da água”, acrescenta Germano Silva, honoris causa pela Universidade do Porto. “Os nossos avós agradeciam as dádivas da terra e pediam casamento para as filhas, daí o São João casamenteiro”. Moça que queria saber se casava cedo atirava uma alcachofra à fogueira, retirava-a quando se apagasse e punha-a sobre o telhado da casa onde morava. Se as partes queimadas reverdecessem, casava em breve. “O mesmo se passava com o cravo”, reforça Germano. “A moça deitava-o à rua na noite de São João e punha-se a espreitar da janela. Se a primeira pessoa a passar fosse um homem e pegasse no cravo o casamento estava garantido. E para breve…”