Há uma abelha, uma ursa, uma barata, uma hiena, um cisne-negro, uma mosca-da-fruta ou uma coruja. Mas não se pense que estamos na quinta dos animais, embora também aqui os trabalhadores sejam todos iguais, e uns mais iguais do que outros. Estamos, sim, numa empresa que precisa de despedir um funcionário, mas que não quer fazer o trabalho sujo. Solução? Obrigar quem está na lista dos dispensáveis a encontrar quem conhecerá o destino já traçado. Eis Olho da Rua, o novo romance de Dulce Garcia, 51 anos, jornalista com três décadas de ofício, nomeadamente no Diário Económico e na Sábado, que em 2017 mudou de vida. Deixou as redações, publicou o seu primeiro romance, Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum, e reinventou-se. É também sobre isso que reflete em Olho da Rua, uma observação microscópica do mundo do trabalho e das suas desumanidades.
Diz-se com frequência que um despedimento pode ser uma oportunidade. A sua experiência também lhe diz isso?
A afirmação tem qualquer coisa de verdade, embora fortemente exagerada nesta era de grande investimento no enriquecimento pessoal e na proliferação de livros de autoajuda. Pode ser uma oportunidade, sim, mas nada disso exclui a certeza de que um despedimento pode ser uma situação traumática e de grande sofrimento. No seu livro O Ano do Pensamento Mágico, Joan Didion chega a compará-lo, com as devidas distâncias, a um luto. Há uma dimensão de fracasso social.
Por se tratar muitas vezes da nossa identidade?
Exatamente. Ainda pertenço a uma geração que viu a ascensão social através da formação académica e do trabalho. Muitas pessoas foram as primeiras na família a tirar um curso superior, e o dinheiro da Europa dava a ideia de tudo ser possível. A promoção do emprego como grande meta pessoal teve, nessa altura, um grande impulso. Trabalhar muitas horas era muito bem-visto (parece que hoje ainda é). Era a afirmação dessa identidade pessoal. O resto vinha depois. Daí que, nesta perspetiva que em alguns casos ainda se mantém, tirar o trabalho a alguém é roubar-lhe muito.
Se se acreditar na morte anunciada do emprego para a vida, podemos esperar muitas crises?
Muitas crises, muita angústia, de par, claro, com as tais oportunidades. Nesse aspeto, é como a reinvenção do amor e da família. A experiência permite-nos encarar com outra força uma segunda oportunidade, construir novos laços familiares, ter até uma vida amorosa mais feliz. Mas a marca do divórcio anterior, mais ou menos doloroso, fica lá. Podemos encontrar uma nova profissão que nos realize ainda mais, mas é preciso ter cuidado e verificar se não ficaram cicatrizes esquecidas.
E, para um escritor, um despedimento é matéria literária apetecível, dada a sua componente dramática e emocional?
Sem dúvida. Escrever sobre um despedimento é encarar uma reinvenção. Quem somos depois de termos passado anos e anos a trabalhar dez ou 12 horas por dia? Como se recomeça uma nova vida? Passei por essa experiência. Fui jornalista durante 27 anos e, de um momento para o outro, decidi seguir outro caminho. Tive de me reencontrar.
Em que sentido?
Muitas vezes, as nossas vidas passam-se mais no local de trabalho do que em casa ou com os nossos amigos. Por outro lado, e isso interessa bastante à literatura, o mundo do trabalho está cheio de cerimónias e de convenções que é preciso manter.
É um teatro de máscaras?
Num certo sentido, sim. E quando as coisas começam a correr mal, surgem as grandes ofensivas, os conflitos, as máscaras que caem. Acaba-se o fair play e fica-se em carne viva.
O caldeirão ideal para um escritor…
Nem mais. Não escolhemos a nossa família, e nela também há grandes personagens. No mundo do trabalho, é ainda mais acentuado. As variáveis da equação são consideravelmente maiores. Muitas personalidades, muitos estratos sociais, muitas histórias de família, muitos ingredientes.
Já se vê que todas as empresas felizes são iguais, as infelizes são-no cada uma à sua maneira.
[Risos] As felizes devem ter salas de jogos e lounges. As infelizes têm certamente muitas histórias.
O que desencadeou esta incursão literária no mundo do trabalho, que se pode ler em Olho da Rua?
A notícia da morte de uma publicitária japonesa que se atirou da janela da agência em que trabalhava. Estava exausta, e o patrão reconheceu que chegava a trabalhar 20 horas por dia. Mas também aquela sensação por que todos já passámos. Nas vagas de despedimentos no nosso local de trabalho, ora é alguém que nunca vimos, ora a pessoa que trabalhava ao nosso lado; ora um jovem, ora um casal que, de um momento para o outro, se vê sem rendimento. São momentos sempre perturbadores.
Este romance é uma humanização das estatísticas, ao dar um rosto, ainda que ficcional, a uma realidade que apreendemos normalmente através de números?
Sim. As estatísticas são ótimas porque desumanizam. A literatura faz exatamente o contrário. Além disso, consegue ser ao mesmo tempo particular – falar de uma realidade específica – e universal – abarcar outras tragédias que envolvem sentimentos semelhantes. A estatística cria distância. A história dá a ver e apela à ação.
O seu primeiro romance, Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum, já abordava temas fortemente sociais, como a guarda das crianças. Ainda é o olhar da jornalista que conduz a escritora?
Diz-se que nunca se deixa de ser jornalista, mesmo depois de abandonar a profissão. Sempre quis escrever histórias, desde pequena, mas percebi rapidamente que seria muito difícil fazê-lo. Daí que tenha procurado, ainda jovem, formas de ganhar dinheiro com a escrita. Foi assim que fui parar ao jornalismo. Sou vítima – no bom sentido – da profissão que escolhi por não poder ter a profissão que sonhei. E, com o jornalismo, reforcei ainda mais a minha curiosidade pelo mundo. O nome de uma rua ou uma notícia que me intriga – tudo apela à minha vontade de saber mais e à minha imaginação.
Neste romance, os funcionários de uma empresa vão ser despedidos à japonesa. Perdi horas na internet, mas não encontrei este método sádico…
[Risos] É porque não existe. É uma invenção, um despedimento à big brother. Mas tem qualquer coisa de real, na medida em que muitas vezes a vítima – neste caso, os possíveis despedidos – é que fica com a culpa. Neste despedimento à japonesa, é ainda mais perverso: são os funcionários que têm de escolher quem será despedido.
É uma denúncia pelo absurdo?
Sim. Todas as personagens são exageradas por isso mesmo. E também porque assumem características de animais. São exageradas porque fogem à esfera do humano, para o seu lado animalesco sobressair. Como na selva, a luta pela sobrevivência traz tudo ao de cima. E uns animais são inofensivos; outros, letais.
O despedimento à japonesa é uma invenção, mas a tese 996, citada no livro, isto é, trabalhar das 9 às 21 seis dias por semana, foi defendida por um empresário chinês. A realidade está sempre a ultrapassar a ficção?
Sempre. E a encontrar renovadas formas de exploração. É incrível pensar na evolução nada linear da nossa passagem pelo planeta Terra. Estávamos convencidos, até há bem pouco tempo, de que havíamos alcançado conquistas fabulosas, nomeadamente ao nível da saúde e da paz. E, no entanto… Como é que se continua a cometer erros que já se provou serem erros?
O teletrabalho parece ter vindo para ficar. Acabam as histórias do mundo do trabalho e nascem outras?
Não faltam histórias para contar. E uma que terá de ser contada, não sei se por mim ou por outros, é a da nova solidão. A pandemia apanhou-nos já num ponto de solidão bastante acentuado, criado por várias razões, incluindo a da ditadura do trabalho. A solidão da pandemia foi assentar nesta, com implicações que ainda hoje desconhecemos. O que será da saúde mental das crianças? O que será dos seus afetos?
Há, neste romance, um forte retrato social. É uma crónica dos costumes contemporâneos?
Essa vontade é muito clara. E também a trago do jornalismo e de algumas crónicas que aí fui escrevendo. Gosto de captar a forma como as pessoas falam, de plasmar os diálogos que me parecem representativos de figuras-tipos específicas. É por isso que as personagens não falam todas da mesma maneira ou através de uma linguagem muito cuidada. Quero que sejam reais.
Esse retrato contemporâneo passa muito pela oralidade e por expressões bem portuguesas, desde logo a do título do romance, Olho da Rua.
Desconheço se as outras línguas têm uma profusão tão grande de provérbios e expressões populares, mas os portugueses são extraordinários. Alguns são repetidos até à exaustão, porque são capazes de resumir o que nos acontece no dia a dia. E, em muitos casos, espelham uma certa sabedoria centenária que o nosso país tem, para o bem e para o mal. Podemos ser passivos, mas não somos tontos.
Recorrendo ainda às comparações com animais que faz no romance, qual a melhor imagem de um escritor?
Não é fácil [risos]. Talvez uma girafa. Está sempre a ver o que os outros não conseguem. Apesar de ter os pés na terra, a sua altura faz com que pareça sempre sozinha. Se não estiver lá outra girafa, sente-se abandonada.
Ao segundo romance, Dulce Garcia afirma-se como uma romancista de personagens. É no retrato social que está a força da sua prosa, que foi capaz de saltar das páginas dos jornais (onde já ensaiava o género da crónica) para a corrente da literatura. O olhar talvez seja o mesmo: a vida do dia a dia, os conflitos sociais e comuns a tanta gente, a constante necessidade de reinvenção pessoal. Mas a abordagem é mais expressiva e livre, profunda e acutilante. Olho da Rua (Companhia das Letras, 328 págs., €18,45) é o retrato de uma sociedade dominada pelo trabalho e pelas leis selvagens do “mercado a funcionar”. A descrição dos trabalhadores como animais empresta à narração a ironia que uma fábula pode ter. E o inusitado da situação – ter os trabalhadores a escolher quem vai ser despedido – reforça o dramatismo de um relato atual. Pelo meio, há uma morte. Ossos do ofício.