Aqui, na “ilha” onde trabalho – e por ilha entenda-se um conjunto de quatro secretárias, rodeado de cadeiras e não de mar – fala-se muito de comida, na ótica do utilizador. E quando chega ao mês de novembro, partilhamos sempre a memória do perfume inconfundível da trufa branca e babamos só de pensar no assunto. Não achamos um exagero.
Este fungo é considerado um dos mais caros ingredientes da alta cozinha contemporânea – o preço por quilo pode chegar aos cinco mil euros. Às primeiras chuvas de outono, há um grupo de caçadores que saem à procura desta relíquia, típica da região de Alba, no norte de Itália. Para ajudá-los a encontrar o diamante branco – como lhe chamam os chefes de todo o mundo –, recorrem ao olfato apurado de cães treinados, porque as trufas crescem junto às raízes de carvalhos e castanheiros, mas para baixo, a uma profundidade que pode atingir 40 centímetros. Há que escarafunchar na terra, portanto.
É imprescindível ter bons contactos para fazer chegar a iguaria a Portugal, em boas condições. E, mesmo assim, as peripécias podem ser muitas. Que o diga o chefe Pascal Meynard, 51 anos, há quase uma década à frente do restaurante Varanda, a principal sala de refeições do hotel Ritz, em Lisboa. Este ano, por duas vezes, a sua encomenda não chegou ao destino. Terá sido desviada – o melhor eufemismo que encontrei para “roubada” – no transporte (a caixa onde vinha dizia apenas “diamante”). À terceira, o seu contacto em Itália veio trazê-la em mão. E Pascal estava à sua espera, à porta do hotel, em ânsias.
Este ano, calhou-me a mim a sorte – obrigada Sónia Calheiros, por teres prescindido do teu lugar nesta mesa! – de ir até à elegante sala deste cinco estrelas para degustar o “menu da trufa branca”, coisa que acontece anualmente (em novembro, lá está) e que esgota com facilidade, apesar de o preço subir aos 160 euros por pessoa, sem bebidas. Desta vez, Pascal também estava à porta, mas da sala, a saudar todos os afortunados como eu, com um “bem-vindo”, sem distinção de género, pois a sua pronúncia à la francesa não lhe permite reconhecer esses preciosismos da língua portuguesa.
Mal nos sentamos, ficamos a saber que não iríamos comer a tal trufa que só chegou à cozinha do Varanda à terceira tentativa – numa semana esgotou todo o quilo e meio encomendado, lascado em fatias super finas e aromáticas.
O chefe abre as hostilidades colocando, bem no centro da mesa, uma taça dourada com 200 gramas de trufa branca, de uma segunda leva, que imediatamente começa a libertar o seu aroma inebriante. É leve, rugosa e bastante feia.
Ao mesmo tempo que observamos as árvores do Parque Eduardo VII, mesmo à frente dos nossos olhos, trincamos uma pequena folha de outono, feita de alcachofra, e a emulsão, à base de um tubérculo que se chama tupinambor e chega numa taça morna, come-se à colherada, num ápice de satisfação.
Enquanto não vem a entrada (o momento anterior foi um amuse bouche), não resisto a um maravilhoso pão de azeitonas que me é oferecido numa cesta e peço uma mini baguete para provar as manteigas (citrina e de chouriço) e molhá-la no azeite.
Ainda bem que isso não me tirou o apetite para as vieiras, com topping de trufa (a nomenclatura corriqueira é minha). A elas juntam-se algumas texturas de couve-flor e um pedaço de cherovia. Mesmo antes de as comermos, regam-nos o prato com um molho de Martini, que batizaram de barbas da vieiras, vá-se lá saber porquê.
Antes de estar nesta mesa, já tinha ouvido falar de um tal de Tagliolini fresco que há 9 anos não sai deste menu à base de trufas. Como apreciadora de uma boa pasta, estava expectante. Ainda assim, o famoso prato conseguiu superar essa expectativa. Se desse para fazer freeze de algum momento da refeição, teria sido este, com certeza, logo o mais simples de todos – massa fresca, cozida al dente, durante dois minutos, emulsão de parmesão q.b., e trufa branca ralada ao momento. Dou-me ao trabalho de contar: tenho 10 lascas para misturar com a massa, assim que desfizer o ninho em que ela está arrumada. “Bon Appétit”, deseja-nos o chefe, assim que deixa cair o último pedaço de trufa. Obrigada, mas apetite é coisa que não falta nesta mesa.
A seguir – eu ficava já por aqui – escolhemos de entre um prato de carne (filet mignon de vitela de leite) ou peixe (peixe galo com espargos, cogumelos chanterelles e trompetas da morte). Perante este dilema, é comum atirar-me ao produto do mar. Fiz bem: a posta está mesmo no ponto, nem precisava de ter lá a trufa.
O mesmo não direi da sobremesa, até porque, confesso, nunca comera nada doce que levasse trufa (nem branca nem preta). E isso, só por si, desperta curiosidade, especialmente depois de ler “caramelo com flor-de-sal” no menu. Conforme explica o chefe de pastelaria do Ritz, Fabian Nguyen, que pensou neste exemplar como a reprodução de uma trufa (e conseguiu-o), o gelado de fava tonka (uma semente) que se esconde dentro da construção de chocolate, combina muito bem com a trufa. Depois, há o caramelo salgado lá dentro, o nougat de amêndoa cá fora, o cacau, o ouro…
“Todas as trufas são diferentes, cada pessoa tem a sua, exatamente como elas nos chegam, sujas, com terra.” Estão a falar da sobremesa, mas a frase serve de lição, assim em jeito de despedida. Entretanto, o festim durará até dezembro, altura em que entrará em cena a “prima” menos exclusiva – mas nem por isso menos saborosa –, a trufa preta.
Ritz Four Seasons Hotel > R. Rodrigo da Fonseca, 88, Lisboa > T. 21 381 1400 > 19h30-22h30 > €160 (sem bebidas), só ao jantar