Tudo começou quando um homem foi morto pela polícia em circunstâncias ainda por esclarecer. Depois vieram os motins nos bairros periféricos, o extravasar para outras áreas urbanas, autocarros e contentores do lixo incendiados, uma tentativa de homicídio contra um motorista de autocarro, deputados que incitam à violência e ao abuso policial nas redes sociais, na televisão e no parlamento e, um pouco antes, até o número dois do governo terá destratado oficiais superiores das forças armadas perante testemunhas.
Como se não chegasse, vieram à luz versões dos factos completamente contraditórias. Para uns o homem abatido estava munido de arma branca, para outros não. Para uns a polícia entrou à força no apartamento do homem abatido, desrespeitando a família enlutada, mas para outros não. Para uns a acção da polícia foi provocatória, para outros foi apenas preventiva.
É certo que o inquérito disciplinar e o processo criminal estão a decorrer e um dia destes havemos de conhecer as suas conclusões. Para já sabe-se que o jovem agente que está no centro do furacão terá sido constituído arguido por homicídio simples.
Numa sociedade dita de tradição católica seria de esperar que a influência cristã viesse à superfície nas relações sociais. Mas não. O que se vê é a maior selvajaria e desprezo pela dignidade da pessoa humana e mesmo pela sua vida. Como é que chegámos aqui?
De facto talvez não tenhamos chegado a lado nenhum e nem sequer nos tenhamos movido. Provavelmente sempre estivemos no mesmo sítio. Um sítio miserável, mas disfarçado. Primeiro por uma ditadura que abafava a liberdade de expressão e reprimia tudo quanto mexesse, em nome duma certa ordem social e política. Depois fomos embalados por uma mudança radical de regime que nos restituiu as liberdades fundamentais e nos fez sonhar com amanhãs radiantes.
Só que, uma vez virados para a Europa passámos a sofrer as consequências da sociedade pós-colonial e a imitar países com graves problemas de integração de imigrantes. Além disso, quanto mais tomávamos consciência dos nossos direitos mais lutávamos por eles. E quanto mais melhorávamos as condições de vida, mais exigentes nos tornámos para com os poderes públicos e mais os escrutinávamos, o que é perfeitamente normal. Porém, não teremos percorrido todos os mesmos caminhos, e alguns foram deixados para trás, tanto entre as elites como na população em geral. A civilidade não acompanhou o progresso social.
Na prática temos hoje uma população ainda formalmente religiosa, mas cuja conduta e valores parecem estar a milhas dos princípios do evangelho, do exemplo de Jesus Cristo e da ética cristã.
Se a fé se limita a ser uma herança familiar, vale o que vale porque a fé nunca é um bem físico que se herda. Mas se é apenas uma referência cultural para pouco serve porque a cultura está constantemente em transformação. Por outro lado, a Igreja não é um sítio onde se vai, é uma coisa que se é. Aquilo a que chamamos igreja é o templo, Igreja é o conjunto dos que percorrem juntos os caminhos da fé em Cristo.
Enquanto a religião for encarada como um conjunto de dogmas que não se podem discutir, um conjunto de normas, ritos e procedimentos cristalizados no tempo, e um conjunto de crenças dificilmente compaginadas com a vida contemporânea, tornar-se-á inevitavelmente uma prisão para quem a leva a sério. A alternativa é validá-la enquanto marca cultural distintiva, mas que não interfere nas convicções e estilo de vida.
O que resta então quando falta uma bússola ética e moral? Apenas o viver ao sabor das circunstâncias e a adesão, mesmo inconsciente, aos valores duma sociedade onde não há lugar para Deus. Perde-se o sentido do sagrado, a dimensão da transcendência e ficamos mais pobres, entregues aos impulsos mais primários da bestialidade humana. E aí tudo se pode justificar em nome das circunstâncias, desde matar e roubar a destruir, amaldiçoar e destilar ódio, por que o diabo são sempre os outros, seja por que são de etnia diferente ou por que são polícias.
Na encíclica que Francisco está agora a publicar (“Amou-nos”), e na qual denuncia o “narcisismo”, o “consumismo insaciável” e o “individualismo doentio”, pede também ao mundo para “mudar a partir do coração”. Afinal a receita é antiga: “E lhes darei um só coração, e um espírito novo porei dentro deles; e tirarei da sua carne o coração de pedra, e lhes darei um coração de carne” (Ezequiel 11:19). No fundo, os problemas que hoje enfrentamos resultam dum coração doente.
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