Nos últimos dias, Pedro Adão e Silva, depois da entrevista que fez capa da VISÃO há duas semanas, em que falou do ambiente de polarização e dos média, voltou à carga na TSF e criticou a forma como funcionou a Comissão Parlamentar de Inquérito (comparando os deputados com “procuradores de cinema americano de série B”) e o seu tratamento tipo “reality show” na comunicação social. As declarações caíram mal a alguns parlamentares, nomeadamente ao socialista Lacerda Sales, que conduziu os trabalhos da CPI e exigiu uma retratação.
Não adianta determo-nos muito a perscrutar quem tem razão. Acho que existe liberdade de avaliação e apreciação: tanto os ministros conservam a possibilidade de ter uma visão crítica sobre como se aprovam leis e decorrem comissões de inquérito (e, a meu ver, houve, de facto, momentos nada construtivos), como os deputados têm a liberdade de não gostar de ouvir essas críticas e de responder aos membros do Governo. Respeito institucional não é “respeitinho”, e ninguém está impedido de tecer considerações civilizadas sobre o modo como os outros órgãos de soberania atuam. Liberdade democrática é poderem criticar-se, coisa que já aconteceu centenas de vezes antes, e inclusivamente fazerem-no dentro do mesmo partido. O resultado destes episódios de críticas mútuas nem sempre é edificante, e, na maioria das vezes, mais valia terem-se remetido todos ao silêncio.
O meu ponto é outro: a “degradação do ambiente político”, invocada por Pedro Adão e Silva. Partilho o diagnóstico – degradação é, aliás, um eufemismo –, alongo-me nas causas.
A principal causa é da responsabilidade do Governo, claro está. Não o dizer é fazer o mesmo que alguém que leva com uma porta na cara e diz que a culpa é da porta e não de quem a empurrou. Pedro Adão e Silva assumiu com parcimónia, na entrevista que deu à VISÃO, “erros autoinfligidos”, que afirma que foram até reconhecidos pelo primeiro-ministro. Mal seria se assim não fosse. É certo que este Executivo, o terceiro consecutivo de António Costa, não tem tido vida fácil – depois de uma pandemia, apanha uma guerra na Europa e uma situação de inflação que é um fator histórico de conturbação política e social –, mas tem cometido muitas falhas. Falhas azaradas, falhas negligentes, falhas de palmatória, falhas incompetentes, várias imperdoáveis. A saída de 13 governantes em 16 meses, um recorde, confirma-o.
Tenho escrito que muitas destas falhas se podem explicar pela sensação de conforto que traz a maioria absoluta (chegou tarde, ao fim de seis anos) e que contamina São Bento e ministérios: a ideia de que, aconteça o que acontecer, está lá o Parlamento para pôr a mão por baixo e segurar o Governo. A húbris e uma certa soberba que vêm com o poder agravam-se – é um clássico. Imaturidade de vários governantes, falta de experiência executiva e carência notória de coordenação política são outros fatores evidentes.
E, depois, há a praça pública – e a forma como o que se passa na vida política é coberto e debatido –, que inclui a bolha político-mediática, mas vai além dela. São decisivos os próprios partidos e os seus porta-vozes, os protagonistas da sociedade civil (sindicatos, associações, movimentos, etc.), a comunicação social – impressa, online e as TV, com lógicas de funcionamento muito distintas – e as redes sociais, onde o ambiente é cada vez mais superficial, entrincheirado, polarizado e envenenado por fake news. O que acontece, hoje, em Portugal e não só – basta olhar para os EUA e o Reino Unido – é uma contaminação de muitos dos agentes públicos por estas dinâmicas das redes sociais.
Os políticos estão infetados deste mal. É sabido que, nos extremos, sobretudo à direita, vive-se do oportunismo e da exploração dos medos e ressentimentos momentâneos. Pior do que isso, os partidos “tradicionais”, como é o caso do PSD, perdidos num mundo em mudança, praticamente abdicaram de fazer oposição para além da luta diária à boleia da polémica que está nas trends do Twitter. Não ganham nada com isso, como mostram as sondagens, mas insistem.
Nas dinâmicas contemporâneas do espaço público, a moderação e a reflexão são ativos, mais do que subvalorizados, dispensáveis. Porque uma opinião fácil, extremada, julgadora, cabalística e, na maior parte das vezes, irresponsável tem mais tração (até ao sabor das bolhas e dos algoritmos) do que outra que procure analisar, ponderadamente, diversas vertentes de um problema complexo. Ser moderado é, hoje, um handicap; não está na moda. Caiu em desuso, cheira a mofo. A própria mecânica de representatividade na comunicação social, principalmente nas televisões, impõe que se procurem pessoas muito exclamativas para espelhar supostas formas de olhar o mundo.
Como bem notou Pacheco Pereira, tudo isto contribui para uma intoxicação da opinião pública. No contexto mediático atual, é mais fácil entrar numa das trincheiras e ficar sob proteção desse grupo do que estar lá em cima a tentar encontrar razões de um lado e de outro – e ser alvejado de ambos os lados. É mais fácil arrasar em vez de apreciar, destruir em vez de contextualizar, tomar partido em vez de analisar. Ninguém está imune. Resistir ao entrincheiramento exige muitas vezes coragem. E, sobretudo, exige sentido de responsabilidade e dever cívico. Quanto a mim, volto a citar o Régio – não sei por onde vou, nem sei para onde vou, mas não quero ir por aí.
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