A crise da habitação em Portugal não é uma crise – é uma emergência. Tempos houve em que era difícil à maioria das pessoas viver com dignidade nas cidades portuguesas. Hoje é impossível. A ameaça ao direito à habitação tem rasgado o tecido social português, com consequências que há muito transpuseram o campo da inconstitucionalidade ou da ética: que país vai sobreviver ao sufoco e à emigração de quem cá vive e trabalha, dos jovens, das famílias, dos pequenos negócios? Há dias, ouvi na rádio uma especialista em Feng Shui, com dicas de decoração para melhorar o fluxo energético das nossas casas. Não questionando a importância do “chi”, sugiro começar por garantir que essa casa existe para toda a gente.
Disclaimer: não tenho nada contra quem aplique as regras do Feng Shui onde, como e quando quiser. O “chi” é o limite! Ao mesmo tempo, é irresistível olhar para alguma destas dicas à luz da realidade – que é um cenário onde uma enorme porção da população empenha o pouco que ganha num quarto alugado, muitas vezes partilhado, ou em casas minúsculas e sobrelotadas, com problemas estruturais, para não dizer tendas. O que sobra para comer? Há cada vez mais pessoas sem-abrigo e trabalhadores, com emprego e família, a viver em tendas. Ora bem. Eis-nos num país onde nascem hotéis para quem visita e tendas para quem cá vive.
Estando eu infelizmente habituado à sensação distópica de ver práticas espirituais (ou, no mínimo, exóticas) recomendadas como solução para problemas concretos, sistémicos e do domínio da política, proponho o seguinte exercício: olhar para as seguintes dicas de Feng Shui da perspetiva de um casal que, sem folga para arrendar uma casa inteira, aluga um quarto com cama de casal num T3 partilhado com desconhecidos nos arredores de Lisboa a 580€. Uma história como tantas outras. Estas dicas prometem harmonizar a energia da casa e trazer sucesso e prosperidade:
1. Garantir luz natural com abundância;
2. Ter a casa sempre limpa e arrumada;
3. Deixar o ar circular, mantendo portas e janelas abertas;
4. Evitar acumular demasiados objetos na mesma divisão;
5. Optar por móveis arredondados e/ou dispostos em círculo;
6. Pintar cada secção da casa com a cor adequada (consultar manuais de Feng Shui);
7. Deitar fora os objetos partidos ou danificados;
8. Pendurar um “sino dos ventos” nos corredores, entradas e locais onde se “movimenta energia”.
9. Deixar as frustrações à porta de casa e substituir as fotografias/quadros antigos, de pessoas sozinhas ou alusivos a temas stressantes por imagens de beleza e alegria;
10. Dividir a casa em nove áreas, num mapa de energia com áreas para as respetivas dimensões da vida (sucesso, prosperidade, relações, amigos, família, criatividade, espiritualidade e centro);
Como aplicar isto quando a “casa” é um quarto esconso com casa-de-banho partilhada? Boa sorte.
Nenhum pacote de medidas para devolver às pessoas o direito à habitação será suficiente se não responder à noção da urgência. A situação a que chegámos resulta da negligência prolongada e de uma fé na ideia de que o mercado se autorregula. Pois aqui está o exemplo concreto do que acontece a um bem essencial quando é entregue ao mercado. Para além das medidas de médio e longo prazo para promover habitação pública, regular o arrendamento e travar a especulação imobiliária, a emergência pede uma resposta rápida. A par da legislação que desincentive a manutenção de casas vazias (como a que existe na Bélgica, na Alemanha, nos Países Baixos), o património devoluto do Estado deve ser mobilizado para habitação.
Até lá, enquanto uns pregam a harmonia da “energia vital” do lar como resposta à frustração, à precariedade e ao ressentimento, Portugal terá de perceber que está a matar o seu próprio “fluxo energético”, impedindo as pessoas de sonhar com uma vida melhor. Sem uma viragem séria e um futuro que se veja, de nada nos servirá a fabulosa abundância em luz natural.
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