No primeiro álbum de rap que ouvi, ainda criança, Gabriel O Pensador cantava assim: “a palavra saudade só existe em português, mas nunca faltam nomes se o assunto é ausência”. Hoje, passadas muitas descobertas musicais, ainda me sinto agradecido ao amigalhaço que me emprestou o CD. Até porque já ninguém empresta CD’s. Em 2023, um miúdo como eu teria de esperar que o Spotify lhe sugerisse aquele álbum. Sozinho.
Em maio deste ano, um relatório de saúde pública nos EUA identificou uma “epidemia de solidão” naquele país. Há cada vez mais pessoas a sofrer com a carência de relações humanas. Para além do impacto assolador na saúde mental, a solidão aumenta em 29% o risco de doença cardíaca e em 32% o risco de AVC. Mais: não é um problema norte-americano. Na Europa, o primeiro grande inquérito europeu sobre a solidão (2022) reflete o alastramento recente deste problema. As pessoas estão sós no dito mundo Ocidental. Rodeadas de gente e, no entanto, profundamente sós.
Quando pensamos em pessoas sozinhas, é comum imaginar pessoas isoladas, abandonadas, com poucos contactos sociais – pessoas mais velhas, por norma. A avó, o avô. Os números do isolamento comprovam-no: os mais velhos são quem mais dá por si em contextos com falta de ocasiões para nutrir relações ou trocar uma palavra. Já a solidão, contudo, é um sentimento. Tem principalmente a ver com a qualidade das relações. É, assim, possível não estar isolado – interagir, inclusive, diariamente com outras pessoas – e estar só. Neste campo, o estudo da Comissão Europeia traz revelações: são os jovens quem se sente mais só.
Não é propriamente surpresa. O modo de vida contemporâneo empurra-nos para rotinas solitárias e autocentradas. Por muito que possamos sentir-nos em interação permanente nas redes sociais, a comunicação digital não substitui a necessidade humana do encontro. É uma bela ferramenta, um meio, mas não passa disso: anestesia. Vivemos atomizados sob a moral neoliberal do “believe in yourself”, que eclipsa a importância da ação coletiva, da organização em grupos com objetivos comuns. Quantos passos dei hoje? Sem nos apercebermos, andamos obcecados connosco próprios: as calorias que ingerimos, a nossa pulsação, a nossa respiração, o nosso sono – apanhados num discurso de “valorização individual” que frequentemente roça o egocentrismo. O resultado está à vista: perante urgências coletivas – as desigualdades, a precariedade, a hiperconcentração da riqueza, as alterações climáticas -, a “geração mais preparada de sempre” é incapaz de se organizar para lutar pelos seus direitos. Fomos ensinados a correr em pista própria.
E correr em pista própria é estar só. Elizabeth Mestheneos, ex-presidente da plataforma AGE Europe, abriu a Semana Europeia da Saúde Mental invocando um estudo sobre socialização em que se concluiu que “os papagaios são mais felizes quando falam com outros papagaios”. Não pondo em causa o estudo, diria que precisamos menos de papagaios à conversa e mais de estimular o interesse em ouvir, em observar, em aprender, em compreender. O outro. A resposta está cá fora.
É indispensável priorizar a socialização cara-a-cara na educação das crianças, combater o vício dos telemóveis em todas as idades. Promover a cultura e as atividades artísticas – por excelência, o campo do encontro e do convite à compreensão do outro. Incentivar o espírito crítico e a cidadania ativa, a ação coletiva e o associativismo. Individualmente, precisamos de acordar para o mundo à nossa volta: família, amigos, colegas, os rostos que compõem a nossa comunidade. Não adianta “acreditar em nós” se não acreditamos nos outros.
Termino com outro verso brasileiro: “triste é viver na solidão”. Felizmente também tive quem mo desse a ouvir. Se este texto conseguir motivar uma ou duas sugestões musicais, um ou dois convites para sair, conversar ou trocar ideias, já nos sentiremos um pouco menos sós.
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