O livro mais “escondido” que conheço é provavelmente a Prova de Vida, três volumes com cerca de 500 páginas cada, escritos por José Manuel Rodrigues da Silva, que cobrem aproximadamente todo o século XX (desde os inícios do século através da evocação dos pais até 2005). Editado pela Quimera, com uma tiragem de 40 exemplares, o livro nunca esteve à venda (“porque uma vida não se vende”) e, graças à colaboração do seu editor José Carlos Alfaro, foi oferecido aos seus amigos mais próximos. O autor foi jornalista, designadamente chefe de redação deste nosso JL. E é dele a descrição mais emocionada desses idos de Março de 62:
“1962 – Lisboa, Coimbra, Porto (…) o Portugal universitário que então havia. E foi a ele – quem diria? – que se deveu a primeira de quantas rebeliões juvenis houve na década de 60 por esse Mundo fora. Dos Estados Unidos ao Japão, da América Latina à Europa. 1962 – Portugal, pequeno país, grande Ditadura. E nós, estudantes – seis anos antes do Maio de 68 em França! (…) A história está contada, com o rigor do pormenor, dia a dia. Mas eu, dia a dia, não me lembro. Porque me lembro como se os dias todos tivessem sido apenas um único. Um único dia. Longo, e, simultaneamente, tão breve. Como sempre que o relógio da História bate em uníssono com o do nosso próprio coração. (…) Em 1962 foi como se não tivesse havido nem antes nem após. Três meses de luta, três meses de festa. Três meses de paixão. Febris, como é de lei. Intensos, como não podia deixar de ser. Calorosos e fraternos como jamais (…) Questão política? Não: questão ética, antes de mais…”
Subjacente ao movimento destes 100 dias que abalaram o regime (Coord. Artur Pinto, Lisboa,ed.Tinta da China, 2012), estavam as Associações de Estudantes (AEs), talvez as únicas instituições democráticas legais (embora sempre ameaçadas) em ditadura – situação paradoxal provavelmente devida à escassa e privilegiada população universitária de então.
Nas AEs se aprendia a democracia pela sua vivência – pela liberdade de expressão e de reunião praticada em debates intensos que, sendo certamente vigiados e denunciados, se ficavam em público pelo cauteloso debate de ideias. Aí se aprendia a identificar e formular problemas, a ouvir os outros, a desenvolver capacidades oratórias e de persuasão. Pelo cumprimento rigoroso do processo eleitoral desde a constituição das listas à elaboração dos programas de atividades, se aprendia a dirigir e participar numa Assembleia Geral, a representar os outros e por outros ser representado, a votar conscienciosa e responsavelmente…
As AEs organizavam-se também em “secções” por tipos de atividades : de “convívio”, “folhas” (editorial), “culturais” (que podiam incluir o jornal da AE ou o seu Grupo Cénico), de “propaganda”, “pedagógicas”, “desportivas”, etc. Desempenhavam um papel de sonda de novas necessidades sociais criando secções à medida dessas novas necessidades de formação. Constituíram assim muitas vezes “escolas informais”. A vida profissional de muitos estudantes de então foi mais determinada por esta vivência associativa do que pelos estudos formais. Enquanto estes apareciam como que cristalizados na transmissão dos seus saberes imutáveis, era nas AEs que os estudantes podiam tomar contacto com os novos tempos, conhecer os problemas que afetavam a sociedade, exercitar o seu pensamento crítico, criatividade e autonomia, passar à acção, trabalhar em conjunto, ser solidário, procurar soluções, experimentar, avaliar…
A crise de 1962 veio dar mais significado e conteúdo a este trabalho. José Medeiros Ferreira relata o seu percurso pessoal: “Então foi como se um encontro com o destino estivesse marcado (…) exercitei conscientemente uma série de atributos que queria testar em mim: a capacidade estratégico-tática, a persuasão pela oratória, a coragem cívica perante a opressão. Fiz sempre isso com a cabeça fria e o coração quente (…) A crise estudantil marcou-me decisivamente. Toda a educação para a responsabilidade recebida em casa tomou um sentido coletivo e cívico (Memórias Anotadas, Ed. Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2017, p. 67) (…) A defesa da liberdade de organização, autonomia da Universidade e autogoverno das associações de estudantes desde 1956 marcará sempre a vida da instituição (…) Este será o tempo em que as associações de estudantes desempenharam a função de participação cívica, da formação do carácter, da inovação de temas” (p. 74).
Hoje, mais de 60 anos depois, queixamo-nos da falta de participação dos jovens nas estruturas representativas das escolas de diferentes níveis de ensino. Do seu desinteresse pela política e pela intervenção cívica. Já em 2009, Jorge Sampaio, em 1961-62 secretário-geral da Ria (Reuniões Inter-Associações da Universidade de Lisboa), e Presidente da República Portuguesa de 1996 a 2006, retrata a situação do país em termos que só continuaram a agravar-se:
“Em tempos de conhecidas dificuldades, em que só se fala da crise económica e do desemprego, em que os políticos e a política se encontram profundamente desvalorizados, em que os atos eleitorais são cada vez menos participados e mais ignorados, e em que os laços sociais, a solidariedade e o sentido da coletividade perdem força e sentido a olhos vistos, é urgente inverter esta tendência e impedir que se transforme em mais uma clivagem geracional” (p.6 de O meu livro de Política, Ed. Texto, 2009 – pequeno “conto falado sobre a política, declinado no modo autobiográfico, num estilo coloquial…” e destinado a jovens).
Jorge Sampaio tentou-o interessando-se profundamente pela Educação em Portugal e criando a APGES, Plataforma Global para a Educação Superior nas Emergências (inicialmente para os Estudantes Sírios, depois alargada a outras situações derivadas de guerras, conflitos ou de catástrofes naturais).
Defendo que a participação deve começar muito cedo (na família, na escola…), que a voz da criança deve ser auscultada e ouvida (mesmo que nem sempre possa ser seguida…) e suscitada a sua capacidade de empatia. O que mais me preocupa neste momento em que muitos jovens vão participar pela primeira vez num ato eleitoral – ou nem vão … – é a escassa compreensão do outro, em especial do mais diferente, o receio do outro que as chamadas “teorias da substituição” vêm acentuar e agravar; o desconhecimento ou mesmo a rejeição do que a Declaração Universal dos Direitos Humanos veio consagrar em termos de reconhecimento da igual dignidade de todo o ser humano e dos direitos – e deveres – que lhes estão associados; do seu significado na nossa História de progresso na cidadania de que os “idos de Março 62” constituíram um momento inesquecível e anunciador… J