Fui eu que construí esta casa com o mê marido. Co’as minhas mãos. Com o mê suor. Vivo aqui há 53 anos, com o mê marido, nesta casa, que é nossa. Criámos aqui três filhos, temos mais de uma dezena de netos, passámos aqui todos os natais com toda a família desde o primeiro ano que prá’qui viemos.
Temos seis quartos lindos que eu mesma decorei, o mê cunhado da minha mai’ nova é que fez aqui estas camas e estes armários tã bonitos, qu’ele é carpinteiro, e a dona Clotilde é que fez estes cortinados e estas colchas brancas com este ponto qu’é uma beleza, está a ver que lindas? Ela ainda mora aqui em frente, se lhe quiser dizer do talento que ela tem, diga-lhe, ela já vai para 98 anos e também já fez saber que nã arreda pé daqui por esta ninharia que nos querem dar. Já viu a sala? É espaçosa, não é? Fazemos aqui muito almoço, muito lanche, muita noite à lareira, pomos a conversa em dia, a entrada é bonita, cá fora temos o galinheiro, os coelhos, os patos, está a ver aqui a horta? Saiu daqui tudo o que acabou de almoçar, está a ver aqui este laranjal que dá para aldeia toda? A senhora esteve a perguntar, a perguntar, dos porquês d’eu não querer aceitar o que me querem dar por isto, mas agora pergunto-lhe eu: onde é que vou eu pôr as minhas coisas todas dentro do contentor onde me querem pôr? Diga-me, se faz favor, se faz ideia, menina. Vou fazer 77 no dia 17 de dezembro, o mê marido também nã vai p’ra novo, tem mais 12 anos do que eu. Estã a oferecer-nos um contentor para viver, dizem qu’aquilo é temporário mas é para mais de dois anos! Está a ouvir-me? Dois anos num contentor, acha isso temporário?
Olhe bem para esta casa, menina! E agora imagine isto tudo inundado… e a viver num contentor que nem uma pia tem! Acha bem, menina? Eu esperava ao menos uma casa pré-fabricada, agora um contentor? Num contentor vivem aqueles que fogem do sê país e q’a gente vê p’raí na televisão a serem apanhados pela polícia armada de cães a farejá-los como se fossem animais, então agora é isto o qu’nos espera? Eu podia ter emigrado, menina, mas eu nã emigrei, eu ganhei tudo aqui, na lavoura, aqui nestas terras, está tudo aqui, o que ganhei, o que trabalhei, o que suei, o que chorei, o que vivi! Ninguém nos pode obrigar a sair sem nos dar uma casa decente. Sei qu’o’ qu’me vã dar nã me vai deixar saudades, para qu’é’qu’eu vou agora aceitar ir p’ra’um sítio que me vai fazer ter tantas saudades deste aqui? Sabe o que já lhes disse? Fiquem lá co’o dinheiro que me querem dar e deem-me mas é uma casa com’à minha! Acha qu’eles querem? Claro que não! Pois está claro que não querem, porque isso é muito dinheiro, muito mais do c’ó qu’eles estão a dar. Essa é que é essa, menina, qu’eu não saio daqui, mas não é porque esteja armada em carapau de corrida e a pedir mais do que mereço. Sempre fiz tudo para chegar ao fim da minha vida e ter uma casinha minha para não andar aos pontapés de ninguém, e agora ando aos pontapés deles? Eu não merecia isto, valha-nos deus.
Como porta-voz da empresa responsável pela construção e manutenção das barragens, venho por este meio confirmar que a Hidroelétrica que represento se encontra a agir dentro da legalidade. Somos acusados de não resolver com dignidade e atempadamente o problema de realojamento dos cidadãos a viver dentro dos concelhos que mais serão afetados pela construção das barragens, mas tal facto não constitui em si uma verdade. Relembro-vos que até o primeiro ministro disse no discurso de tomada de posse que este é um projeto de construção muito importante para que o país possa começar a descarbonizar! Estas barragens têm de ser e serão um projeto exemplar e nós compensaremos devidamente todos os que, objetivamente, e só objetivamente, forem de facto lesados de forma direta com a sua construção. O realojamento das famílias afetadas é considerado, naturalmente, um objetivo prioritário, e contamos ter todos os acordos fechados com todas as famílias em questão até ao final desta semana. Este é um dos maiores projetos hidroelétricos e dos mais importantes na Europa nos últimos 25 anos, com milhares de milhões de investimento e a criação de milhares de postos de trabalhos diretos e sobretudo indiretos. Não há nenhuma razão para duvidarem das nossas melhores intenções. Estamos a cumprir com todas as nossas obrigações com o objetivo de melhorar a performatividade energética do nosso país com o menor impacto ambiental possível. Relembro que estes pequenos quid pro quos são apenas 1,5% de todos os acordos que até hoje foram feitos, isto se incluirmos aqueles que agora ainda decorrem faltando-lhes apenas pequenas legalidades aqui e ali, como a falta de registos prediais, assinaturas de senhorios cujo paradeiro se desconhece, indemnizações já discutidas mas não assinadas, e heranças ainda não afetadas a quem de direito. Na próxima semana há reunião com todos os interessados. Temos de ultrapassar o impasse e não sabemos como, pois da nossa parte já estamos a dar tudo o que podemos dar. Contamos com o bom senso dos que se manifestam.
O que a Dona Glória nos está a pedir não é possível de satisfazer, devo dizer. A Dona Glória diz querer uma casa igual à que tem. Ora, isso nunca é possível, como se sabe. Ninguém consegue ou pode ou deve compensar a dona Glória pelo valor sentimental de perder o lugar onde cresceu, casou, criou os seus filhos e passou grande parte da sua vida. Há que compreender o que está em causa. Ainda há uns meses atrás uma associação de ambientalistas também se veio queixar dos 1700 sobreiros que teremos de abater para desviar o curso das águas. 1700 sobreiros sempre são 1700 sobreiros, mas uma barragem também será sempre uma barragem, compreende? E o país comprometeu-se a encerrar as outras barragens antes de 2023 e para tal é necessário que a nossa já esteja a produzir energia elétrica da cascata e em cascata, minha senhora! E é isso que temos de cumprir sem olhar a quem! Tem de ser!
Temos de concordar que o abate de sobreiros, a perda da biodiversidade, a deslocação das famílias, a inundação de terrenos que são património nacional e mundial desde a Idade Média ou outros pequenos danos colaterais são meros pormenores neste que pode ser o melhor dos mundos possíveis graças à nossa tecnologia e à nossa construção de sistemas que inevitavelmente trarão progresso, comodidade, água e futuro, pelo menos para alguns, no nosso país. Concordamos todos, certo?