Ora aqui tem tudo, minha senhora. Diga? As cotonetes? A água de colónia? Penso que sim, está tudo aqui, mas se quiser pode verificar enquanto eu espero. Tem aqui a sua lista de compras. Quer ajuda para arrumar as coisas? Quer que ponha tudo na cozinha? Não falta nada de certeza, a carrinha está vazia. Ora assine aqui e aqui, se faz favor; Uff, isto é um 2º andar alto, espero que o elevador… Aceito um copo de água sim, obrigada. Desinfetei as mãos, minha senhora. Ah, é de plástico. Pois percebo, isto hoje em dia todo o cuidado é pouco.
Hoje já não faço mais entregas, ando aqui desde as sete da manhã e agora são… ora deixe ver… quase oito da noite, já viu?
Assim se passa um sábado. Hoje não vi viv’alma na rua. Obrigada pelo copo de água, minha senhora, tenha um bom fim de semana, a senhora é sempre muito gentil. Ah sim, obrigada pelo extra, não era preciso, mas muito obrigada. Olhe, se puder, se tiver um tempinho, posso pedir-lhe um favorzinho? preencha o questionário sobre o meu trabalho, sim? Ao fim de 100 comentários bons recebo um bónus e gostava de enviar mais qualquer coisita para a minha mãe. Como está a minha mãe? Olhe, vai-se andando, não é fácil, agora tem mais um filho fora, não é? E olhe, não me leve a mal mas diga, se faz favor, à sua vizinha de cima, se tiver ocasião, para não telefonar tantas vezes para o supermercado a dizer que não percebe nada do que nós dizemos nas entregas… porque… sabe… não há muito a fazer, somos todos estrangeiros neste serviço, ninguém de cá quer fazer este trabalho, e o miúdo que lhe entregou as compras ontem é o meu irmão mais novo, coitado, chegou há três meses à Europa, ainda nem teve tempo de aprender a língua.
De onde somos? Sou sírio, minha senhora, eu já cá estou há dez anos, desde o início da guerra civil. mudei-me para cá para ajudar a família. Mas agora um só, já não chega. Somos seis irmãos, sabe, e o dólar sírio nunca esteve tão baixo como agora, um salário não vale nada agora. Só este ano, o preço da comida duplicou em relação ao ano passado, não sei se viu nas notícias, mas ontem o meu país apareceu no telejornal: 80% da população é pobre, 60% passa fome. Doze milhões e 400 mil sírios passam fome, estava lá naquelas notinhas em baixo do rodapé do telejornal! Um sírio hoje, assim com uma vida normal como a senhora, passa os dias à procura de gás para cozinhar, em filas de espera para comprar comida e a aproveitar as poucas horas que há de eletricidade por dia para carregar o telemóvel.
O meu pai vende beringelas, batatas e maçãs. Ainda houve um tempo, no início da crise, em que vendia sumos e pickles também, mas o preço do gás subiu tanto que já não compensa cozinhar comida para a vender. Eu e os meus irmãos mais velhos deixámos a escola para ajudar a família e agora os meus dois outros irmãos também. Um passa os dias na fila do pão. E o mais novo veio ter comigo aqui. Fui eu que lhe pedi para vir para cá depois de falar com a minha mãe e perceber que tinha vendido o cabelo para comprar casacos de inverno para os meus irmãos mais novos. Já viu ao que se chega? Ganhou 55 dólares! É mais do que ganha um médico num mês, já imaginou? E ela tinha um cabelo tão lindo! Agora vive numa tristeza enorme. E com uma vergonha… Concorda comigo que isto não é vida, não concorda? A minha mãe tem 46 anos! 46!
Hoje estava animada. Enviou uma mensagem a dizer que recebeu o mês de fevereiro e que já tinha comprado um frango. Fizeram três refeições deliciosas de um frango. Há três meses que não comiam frango! São estas coisas que me dão alegria, sabe? A minha avó adora asinhas de frango.
Há 10 anos que estamos em guerra civil, e cada ano que passa ficamos pior e sabe o que o nosso presidente diz quando lhe perguntam sobre o que se passa na Síria? Diz que isto é tudo culpa da brutalidade do capitalismo mundial, que tudo isto é o resultado da manipulação dos media que não o querem ver eleito e que o neoliberalismo é a doença do oeste que está a destruir a Síria. E quando lhe perguntam como vai resolver a fome no país, ele diz que a televisão devia ter juízo e cancelar todos os programas de culinária de forma a não massacrar a população com ideias loucas de pratos que não podem confecionar.
Mas que ideias loucas de pratos a confecionar? Asinhas de frango é uma ideia louca de um prato a confecionar? Ele diz que a culpa é do oeste, mas o que eu vejo é que a senhora pode comprar cotonetes e todos os frangos que quiser sem sair de casa, a minha família está espalhada pelo mundo e passa o dia na rua por um frango em casa em três meses. Qualquer coisa não está certa, e nem é só a guerra civil. Às tantas nem sei o que prefiro, se os rebeldes, se o leão (sabe que Assad quer dizer leão; não sabe?) Foi o avô dele, Ali Sulayman, que mudou o nome em 1927 de Wahsh (selvagem) para leão. O leão. Era um pobre camponês mas subiu na vida e agora somos todos pobres por causa do neto dele.
O leão… pfff… sim senhora… Já pensou que o leão estou medicina? Um médico oftalmologista que ficou cego para o seu povo? Continua a fazer campanha eleitoral como se nada fosse, hoje disse aos gritos que nem pensar em fazer a paz com Israel nem legalizar o casamento gay! E a sua bela esposa faz discursos a prometer que o ensino vai ser todo online, tal como já acontece aqui, na Europa, e a dizer que todos vamos ter escola quando ninguém tem computadores e a eletricidade não chega a lado nenhum, quando muito umas três ou quatro horas por dia e é para aproveitar e fazer toda a lida da casa. Falam falam falam e nada sobre a gente. Já imaginou que este presidente sanguinário treinou para ser médico? Podia estar agora aí a tratar dos doentes com covid em vez de nos matar a todos à fome.
Um médico que deixa morrer à fome
É a senhora matos do 3º esquerdo? Trago aqui as suas compras, pode abrir? Deixe-se estar, não precisa de sair à rua que lhe entrego tudo separadinho por caixas, como pediu: os vegetais, o peixe, a carne, os sumos dos seus netos, as bolachinhas, os sabonetes, as revistas, e ainda lhe trago duas botijas de gás. O elevador não funciona? Não se preocupe senhora, eu subo a pé e levo-lhe todas as caixas lá acima. Vai levar só mais um bocadinho, são muitas caixas. Se tivesse dito que não tinha elevador tínhamos trazido ajuda, hoje sou só eu. Sim, compreendo, não sai de casa há um mês, não reparou no elevador. Já só falta mais uma caixa, pode deixar a porta aberta que eu subo já, já já.
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