A pergunta “O que é uma fronteira?” acompanhou o escritor e historiador escocês durante décadas. A queda do Muro de Berlim, naquela noite de novembro de 1989, deixou James Crawford, hoje com 45 anos, obcecado pela ideia de que a construção de betão, mais do que uma estrutura física, é a história que contamos sobre ela. Depois de estudar as origens das fronteiras, fez uma viagem pela sua configuração atual e escreveu O Poder das Fronteiras – Como Constroem, Destroem e Definem o Nosso Mundo (Saída de Emergência, 366 págs., €19,90), recentemente lançado entre nós.
A pandemia, também ela uma barreira que nos impôs obstáculos até dentro de casa, interrompeu o périplo que James Crawford fez e que passou pelos EUA, pelo México, pela Palestina, por Espanha ou pelo Norte de África. Apesar do entusiasmo de décadas anteriores, o escritor diz que a globalização e a internet não tornaram os Estados-nação e as fronteiras nacionais irrelevantes, mas há um desafio que se avizinha: as alterações climáticas podem fazer alterar várias linhas da cartografia mundial. E os primeiros refugiados climáticos virão da Oceânia.
O que é, afinal, uma fronteira?
De diferentes maneiras, é isso que o livro tenta interrogar. Em última análise, o que pretendo dizer é que toda a história de uma fronteira tem de ser a história que contamos, porque não existe nenhuma fronteira política que seja natural. Sempre que se tenta demarcar o local de onde nos movemos de um território para outro, temos de ter isso em conta, que existe uma razão para isso. A razão pela qual um centímetro além de uma linha deixa de ser um território, uma nação, um país, e passa a ser outro. E mesmo que se utilize, por exemplo, um rio ou uma cordilheira para um substituto dessa linha, ainda teremos de tentar explicar porque é que está lá.
Que tipo de fronteiras existem?
O que temos certamente, nos últimos 20 anos, é um aumento das fronteiras físicas. O Muro de Berlim caiu quando eu tinha 11 anos. Essa estrutura pela qual, de certa forma, estava um pouco obcecado, porque parecia que não dividia apenas uma cidade mas o mundo, caiu naquela noite de novembro de 1989. Falando das histórias das fronteiras, dizemos que o muro caiu naquela noite e, embora isso não seja verdade, o que o muro significava mudou completamente. Antes de ter caído, de ter sido derrubado fisicamente, caiu porque se quebrou na mente das pessoas, não havia mais uma barreira ali. Quando o Muro de Berlim desapareceu, existiam 12 muros fronteiriços, hoje são 75. Pensou-se, na altura, que seria o início da diminuição das fronteiras, por causa da Cortina de Ferro, mas na verdade, a tendência, principalmente desde o início dos anos 1990, é o crescimento de muros.
Para que servem as fronteiras de hoje?
E interessante verificar como as fronteiras mudaram. As que existem hoje têm, em termos de formação e de construção, conceptualmente, cerca de 350 anos, sendo que esse sistema de fronteiras surgiu de uma resolução de paz depois de uma guerra religiosa que destruiu a Europa, de uma divisão na igreja e do crescimento do protestantismo perante o catolicismo e a necessidade de ter limites geográficos. A partir desse acordo de paz, apareceu a ideia de que o monarca deveria decidir que religião era praticada no seu território.
Hoje em dia, as fronteiras servem menos para dividir nações e muito mais para mais lidar com fluxos migratórios. Na verdade, para dividir os ricos dos mais pobres. As fronteiras, particularmente os muros que se vão construindo, têm como objetivo canalizar os migrantes.
É por isso que são uma expressão política?
As fronteiras são sempre uma expressão política. Aliás, só podem ser, porque assumem a forma que se quiser. Podem ser, até, uma simples linha que nem se assinala no mapa. Se olharmos para a maneira como são legalmente feitas, vemos que, em primeiro lugar, há um tratado entre dois países e só depois vem o processo de a marcar cartograficamente e a maneira como é construída. Pode ser uma vedação ou um muro de oito metros de altura, mas é sempre o símbolo de uma vontade política. Apesar disso, sabemos que não impede as pessoas de tentar trespassá-la, como acontece entre o México e os EUA ou no Norte de África para a Europa. Pode dificultar a ação, mas não impede.
A ideia de que as fronteiras são fixas ou imutáveis é ficção?
Sim. Se olharmos para a história das fronteiras (e é isso que tento fazer no livro), no momento em que se traça uma linha, a ideia é a de que ela estará lá para sempre e nunca mudará. Mas o que acontece na realidade é que as fronteiras estão em constante movimento e um dos melhores exemplos está nos EUA.
Se recuarmos a 1819, a fronteira entre o México e os EUA não incluía 800 mil metros quadrados que são hoje dos americanos. Além disso, no tratado assinado entre os dois países, estava escrito que os EUA renunciariam a todas as reivindicações sobre as terras a sul e a oeste dessa linha de fronteira. Essa promessa durou pouco mais de 30 anos. A América entrou em guerra com o México e empurrou a fronteira para a sua posição atual e agora age como se tivesse estado sempre lá.
Porque é que uma linha num mapa tem tanto poder?
Penso que é uma forma simples de mostrar o que é de cada um. Há uma frase de um escritor e poeta norte-americano, Robert Frost, que diz que “as boas cercas fazem bons vizinhos”. Mas quem decide o que é uma boa cerca? Uma fileira de árvores que permite conversar com o vizinho ou uma vedação enorme de onde não se consegue vê-lo porque o que se quer é privacidade? A Humanidade é tribal, gostamos de pertencer, mas também queremos definir-nos em oposição aos outros.
A história mais antiga que se conhece sobre fronteiras foi entre duas cidades-Estado da Mesopotâmia, há 4 500 anos. Conta-se que o pai de todos os deuses traçou ali uma linha, uma fronteira divina preexistente a todos nós e que sempre lá esteve. Claro que isto, simplesmente, não é verdade…
As fronteiras vão sobreviver ao próximo século?
Há uma crise nas fronteiras, embora isso não signifique que vão desaparecer, mas que vão ser colocadas sob tanta pressão que algumas irão romper. Estamos naquele momento em que a prevalência física é, na verdade, um sintoma de rutura, dado que as fronteiras são um sistema antigo para lidar com as consequências de guerras religiosas. E não estão feitas para lidar com a globalização, a ascensão da internet e as alterações climáticas. O clima é hoje o verdadeiro disruptor das fronteiras. Daqui a 50 anos, haverá um movimento de massas para zonas habitáveis.
Tuvalu vai ser a primeira nação a ser consumida pela subida do nível do mar. Serão, provavelmente, os primeiros refugiados climáticos. Um país pode manter a sua condição de Estado, mesmo quando perde o seu território físico?
Esse é um ponto essencial. Nunca tivemos de lidar com o desaparecimento físico de uma nação. Já houve países que desapareceram por causa de guerras, outros que reemergiram na sequência da II Guerra Mundial, mas nunca nenhum foi engolido pela água.
Tuvalu fez o que apelidaram de “cópia digital do país”, ou seja, estão a tentar estabelecer uma espécie de soberania que não se baseia no território geográfico e esperam que as leis internacionais a confirmem. Não sei se vão conseguir, mas a questão é: pode haver uma nação sem fronteiras? Não temos, ainda, resposta para isto, mas o mundo vai ser pressionado a obtê-la.
A Covid-19 interrompeu as suas viagens. As fronteiras desempenharam um papel importante durante a pandemia?
Foi até algo irónico porque eu estava na Noruega para escrever sobre fronteiras e a fronteira fechou, tive de me ir embora. Aquilo a que assistimos durante a pandemia foi a um encolher cada vez maior das fronteiras por causa dos confinamentos. Se estávamos doentes, tínhamos de ficar fechados no quarto sem poder estar, sequer, com as outras pessoas da casa. A porta passou a ser um travão. Foram criadas barreiras biológicas, os cordões sanitários. Desde a peste negra, foi a primeira vez que as pessoas começaram a pensar espacialmente sobre o território.
Como olha para o conflito entre Israel e o Hamas?
É uma tragédia global. Aquilo que estamos a assistir no Médio Oriente é o que acontece quando as fronteiras dão muito errado. Temos dois povos que vivem realidades completamente diferentes e inconciliáveis. É o resultado de uma enorme quantidade de linhas que foram traçadas naquele que é o território mais fronteiriço da Terra. Há um muro de separação que não é uma linha contígua, mas uma série de intervenções com 700 quilómetros num espaço muito pequeno.
Foram as fronteiras que nos levaram a esta terrível crise humanitária para a qual é difícil encontrar uma saída. Não há melhor exemplo do que este que nos diga que as fronteiras não são imutáveis, estão em constante movimento: Israel tenta constantemente anexar mais território à Palestina.
Diz no livro que uma fronteira nunca é simplesmente uma linha, uma marca ou um muro. Primeiro, é uma ideia. O povo ucraniano está a defender o seu território para proteger o seu propósito de vida?
A situação na Ucrânia parece ter sido motivada por uma busca muito pessoal de Vladimir Putin, que passou muito tempo nos arquivos do Kremlin durante a pandemia, a examinar mapas antigos e a contemplar a extensão da mãe Rússia, e decidiu que a Ucrânia nunca tinha existido, que nunca foi um lugar e um povo separados. É mais uma guerra impulsionada por uma história. Uma narrativa que Putin meteu na cabeça, de que a Ucrânia não existe, e que tenta passar para todos.
Tem em casa um pedaço do Muro de Berlim que comprou no eBay. Qual o significado?
É difícil dizer o que significa porque não sei se é verdadeiro, aliás, suspeito que não é. Mas, ao mesmo tempo, isso não me apoquenta, e dei comigo a segurá-lo nas mãos enquanto escrevia este livro.
O que há de tão interessante no Muro de Berlim, diria que quase cómico, é que é uma fronteira que agora está espalhada por todos os continentes, exceto talvez a Antártica… [Risos.] Ou talvez alguém também tenha levado um pedaço do Muro de Berlim para lá… Podemos encontrá-lo em todos os tipos de lugares estranhos e incomuns, seja nos pertences pessoais de alguém, nas esquinas de Nova Iorque ou em museus. Quando estava a escrever o livro, encontrei bocados do Muro de Berlim a servirem de pano de fundo de uma casa de banho em Las Vegas. Para mim, o Muro de Berlim é um símbolo da fragilidade das fronteiras e de esperança na Humanidade. Naquela noite, a História mudou rapidamente, décadas de separação caíram por terra mesmo antes de o muro ser desmantelado. Mudámos a História e mudámos o guião.