Se ainda houvesse bilhete de identidade, este denunciar-lhe-ia o nascimento em Peso da Régua, há 33 anos. Mesmo que já tenha trocado essa cidade banhada pelo Douro pelo Porto desde que entrou na faculdade, para o curso de Ciências da Nutrição. Em 2018, assumiu a direção do programa que se bate por incutir os princípios da alimentação saudável aos portugueses, criado seis anos antes. Este cargo obriga-a a deslocar-se uma vez por semana a Lisboa, à Direção-Geral da Saúde (DGS), onde tem uma secretária repleta de peluches em forma de legumes, distribuídos, em tempos, por uma cadeia de supermercados. A entrevista decorreu, porém, numa enorme sala de reuniões, no último andar deste prédio na Alameda Dom Afonso Henriques, com vista desafogada para a capital. A janela esteve sempre aberta, deixando entrar ar fresco, durante a hora e meia que durou a conversa em torno da forma de nos alimentarmos.
Depois de sete meses de pandemia, é inevitável perguntar-lhe como está a alimentação dos portugueses?
Na altura em que ainda estávamos em contenção social, fizemos um inquérito online e por telefone, pois queríamos perceber como os portugueses se tinham comportado no período que mais condicionou a nossa vida.
O que mostraram os resultados?
A grande maioria reporta ter alterado hábitos alimentares. Metade das pessoas acha que melhorou, consumindo mais hortícolas, mais fruta e bebendo mais água; a outra considera que piorou, aumentando a ingestão de snacks doces e refeições pré-cozinhadas.
O que motivou reações tão opostas?
As pessoas tiveram mais tempo para planear e para confecionar, o que as fez melhorar os hábitos alimentares. Mas também houve stresse, incerteza e ansiedade, que motivou o padrão no sentido inverso.
Nessa altura do confinamento, a DGS publicou um manual sobre alimentação. Essas diretrizes mantêm-se ou estão, de alguma forma, desatualizadas?
Publicámos diversos materiais, porque havia necessidade de esclarecer a população em relação a algumas informações que circulavam nas redes sociais.
Como por exemplo?
A crença de que os alimentos são uma via de transmissão do novo coronavírus fez com que muita gente alterasse comportamentos alimentares, reduzindo o consumo de produtos frescos, como fruta e hortícolas. Esforçámo-nos também para ajudar a população a gerir melhor a alimentação e as compras, num contexto em que as idas ao supermercado estavam condicionadas.
A mensagem, quer estejamos em pandemia quer não, é sempre a mesma?
As recomendações em relação à alimentação saudável são exatamente as mesmas.
Não há nenhum alimento mágico para acabar com esta doença…
Precisamente. No entanto, sabemos que uma alimentação adequada é muito importante para otimizar o nosso sistema imunitário. Hoje, temos mais motivos para manter um estilo de vida saudável. Mas as recomendações que fazíamos antes da Covid-19 são exatamente as mesmas.
Quais são as maiores preocupações do Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável?
Nos últimos anos, temos insistido na recolha de informação para fazer um diagnóstico acerca do que os portugueses comem e definir a melhor estratégia de intervenção. Também investimos na literacia, através da criação de um site, nutrimento.pt, com informações credíveis sobre alimentação. Percebemos, entretanto, que não podemos somente informar e depois aquilo que está mais facilmente disponível não ser compatível com a nossa mensagem.
O que fizeram para resolver isso?
Começámos a trabalhar nessa área, modificando a realidade nas escolas e nos estabelecimentos de saúde. E ainda passámos a utilizar medidas fiscais que podem, por um lado, induzir a uma menor procura por parte do consumidor e, por outro, reformular os produtos, reduzindo aqueles nutrientes que gostaríamos que não estivessem presentes.
Mas esse não é um problema para a indústria alimentar resolver?
Estamos em diálogo com alguns setores para incentivar essa reformulação. Isso vai permitir que, em 2022, altura em que acabará o acordo que estabelecemos com eles, possamos ter os mesmos alimentos no supermercado, mas com melhor perfil nutricional.
Esse acordo é transversal ou identificaram os produtos mais problemáticos e é sobre eles que têm trabalhado?
Identificámos aqueles que mais contribuem para a ingestão de açúcar e de sal, especialmente nos grupos mais jovens.
Temos quatro escalões de imposto, proporcionais à quantidade de açúcar. Com esta revisão, o nosso objetivo é pressionar ainda mais a indústria a baixar esse teor. Não se trata de um imposto para obter receita, mas sim saúde
Estamos a falar de quê? Cereais de pequeno-almoço?
Esse é um bom exemplo, mas também me refiro a iogurtes, leites com chocolate, batatas fritas e outros snacks, nectares ou refrigerantes.
Quando nos chega a informação de que alguns produtos diminuíram a quantidade de açúcar ou de sal, é a DGS que está por trás disso?
Houve uma negociação, mas o setor também se vai adaptando ao consumidor, que é cada vez mais atento e interessado por estas questões.
E houve abertura por parte da indústria?
Sim, até porque a nossa proposta de articulação surgiu depois da introdução de um imposto. De certa forma, existia a expectativa de que as autoridades de saúde pudessem avançar com esta medida para outros produtos, se não houvesse uma perspetiva de colaboração.
Sabemos que os refrigerantes ainda são a bebida de eleição para grande parte dos portugueses. O imposto teve resultados práticos nesse sentido?
Espera-se que esta medida tenha impacto em três áreas: aumentando o preço, pode diminuir o consumo; por outro lado, como age sobre a reputação das bebidas e o mal que podem fazer à saúde, também se espera que afete o consumo; e, por último, funciona como um incentivo à reformulação. Foi nesta última área que tivemos mais resultados, com a redução da quantidade de açúcar em algumas das bebidas mais conhecidas, para poderem passar para o escalão mais baixo do imposto.
Mais do que o impacto no consumo?
Sim e, sabendo disto, no ano passado, alterámos o mecanismo do imposto. Atualmente, em vez de dois, temos quatro escalões, proporcionais à quantidade de açúcar. Com esta revisão, o nosso objetivo é pressionar ainda mais a indústria a baixar esse teor. É que não se trata de um imposto para obter receita, mas sim saúde.
Com quantas empresas estão a trabalhar?
Assinámos este acordo com as associações setoriais, que representam as empresas. Mas, tendo em conta que estamos a trabalhar no açúcar, sal e ácidos gordos trans, estimamos que podem estar envolvidos mais de dois mil produtos.
O nosso ambiente está menos obesogénico?
Estamos a fazer um caminho nesse sentido, que é longo. Por exemplo, uma das áreas importantes para nós são os programas de ajuda alimentar, da responsabilidade do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Desde 2017 que conseguimos elaborar um cabaz nutricionalmente equilibrado, para distribuir mensalmente a estas famílias, que respeita as indicações da roda dos alimentos.
A roda dos alimentos chegou a ser revista, como estava previsto para este ano?
Ainda não aconteceu, nem sequer criámos o grupo de trabalho.
Era importante saber: álcool com moderação, sim ou não?
Na roda, o álcool tem apenas uma menção que remete para um consumo sem risco de uma determinada quantidade.
Entretanto, surgiram outros estudos que apontam para que o consumo zero seja a única quantidade isenta de riscos.
Por isso, essa será uma questão ponderada quando fizermos a revisão da roda.
No ano passado, mais de metade dos portugueses não atingiu o consumo recomendado de frutas e hortícolas e ainda menos no que toca às leguminosas. A campanha que lançaram no final de 2019 surtiu algum efeito?
Talvez tenha sido a primeira vez que fizemos uma campanha transversal a todos os meios de comunicação. E, por isso mesmo, conduzimos um estudo de avaliação para aferir se tínhamos conseguido chegar às pessoas, quais os meios que melhor permitiram levar a mensagem e perceber ainda se a tinham compreendido e, por fim, se teve a capacidade de modificar crenças, atitudes e comportamentos. Os dados já existem, mas ainda não foram publicados.
Sabe-se que a adesão dos portugueses à dieta mediterrânica é baixa. Concorda com o argumento de que os alimentos que a compõem são mais caros do que outros, menos recomendáveis?
Essa justificação é dada especialmente quando se fala de peixe ou azeite, por comparação a outras gorduras. No que diz respeito às frutas, hortícolas e leguminosas existem outros obstáculos, como não gostar ou não saber confecionar. Mas considero que é possível ter um padrão mediterrânico a baixo custo. Aliás, ele surgiu de uma necessidade de nos adaptarmos à escassez de alimentos, como peixe e carne. Daí que as leguminosas tenham sido introduzidas como substituição.
Não gostam ou não sabem confecionar?! O que aconteceu aos portugueses?
Sabemos que a baixa adesão se verifica essencialmente nas populações mais vulneráveis do ponto de vista sócio-económico. No entanto, deixámos de ter a passagem de conhecimento de mãe para filha, ao longo de gerações. O estilo de vida também condiciona muito o tempo para nos dedicarmos à cozinha, além de que grande parte dos nossos jovens tem poucas competências nesta área.
A Ciência já provou que é um padrão alimentar que traz muitos benefícios. Quais os mais importantes?
Trata-se de um modo de nos alimentarmos que nos protege, pois estamos a falar de uma base vegetal, com grandes quantidades de produtos hortícolas, cereais mais integrais e água como bebida de eleição. A forma de confecionar, como os pratos de panela, também ajuda à retenção dos nutrientes. No fundo, são as grandes recomendações para uma alimentação saudável, para a prevenção das doenças crónicas mais prevalentes no País, como as cardiovasculares, oncológicas, a diabetes ou a obesidade – temos evidência científica muito robusta a demonstrar que a adesão ao padrão alimentar mediterrânico reduz o risco de desenvolvimento destas patologias.
O ideal era que essa mensagem chegasse aos mais novos. Mas de que forma isso se faz, se o problema, muitas vezes, está nos pais e na sua condescendência para com as crianças?
Há fases da nossa vida que são determinantes e podem ser janelas de oportunidades. Nos primeiros mil dias de vida, conseguimos programar todos os nossos gostos, paladares e mesmo formar a programação metabólica que condicionará toda a nossa vida futura. Foi por isso que no ano passado publicámos um manual para pais e educadores. Queremos investir muito mais nestas idades para transformar as crianças em adultos que gostam de fruta e hortícolas.
Mandam-nos ler os rótulos para não fazermos más escolhas. Qual a percentagem de portugueses que consegue realmente interpretar o que lá está escrito?
Cerca de 40% da população não consegue, mas em grupos com menos escolaridade, o valor cresce para 60 por cento. Em alguns casos, a indústria já acrescenta informação que nos ajuda a descodificar o que é legalmente obrigatório de constar nas embalagens.