Há uns tempos trouxe uns binóculos “de ver princesas” da Rússia. É com eles que vai assistir à peça que escreveu, publicada agora em livro pela Tinta-da-China. Última Hora estará em cena até ao próximo dia 15, no Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa, e conta a história de um jornal em crise. Aos 53 anos, Rui Cardoso Martins, já afastado das redações, ganhou distanciamento para falar do que está a acontecer com o jornalismo, a liberdade e a democracia.
Foi jornalista, escreveu romances premiados, o seu argumento de A Herdade ganhou agora um Sophia. Quando lhe perguntam pela profissão, o que responde?
Acho que escritor é o que resume melhor tudo isso. Trata-se de uma palavra que, na verdade, não fui eu que usei em relação a mim, foi-me dita por outros. E eu aceitei-a, com muito gosto e muita responsabilidade. Escrevo… é só o que faço.
Escreveu uma peça de teatro sobre um jornal em crise com as suas memórias do jornalismo?
Claro que usei a minha experiência – como sempre faço. De resto, julgo que é o que os escritores fazem, pelo menos os escritores que eu respeito. E fi-lo sem quaisquer problemas, usei pessoas que conheço, agradeço a algumas delas no final do livro, diálogos que tive, diálogos que ouvi, anedotas, caricaturas… Vale a pena contar como nasceu esta peça, porque, para mim, a aceitação também foi um processo. O Teatro Nacional D. Maria II convidou alguns autores portugueses para escreverem peças originais, recuperando um pouco do que deveria ser o espírito de um teatro nacional, quando nasceu, ainda nos tempos de Almeida Garrett. E, em conversa com Tiago Rodrigues [diretor do teatro], perguntámo-nos logo: e porque não há de ser uma peça sobre o que se está a passar no jornalismo?
Apesar de já não trabalhar numa Redação de um jornal, conhece o “caldo de nervos” em que os jornais estão mergulhados?
Felizmente, neste momento, não estou mergulhado nesse “caldo de nervos”. Mas sei o que se passa, vou sabendo; conheço, por exemplo, as dificuldades dos jovens. Faz-me muita confusão que os jovens talentos que aí estão não tenham oportunidade de se mostrar.
Diz que Última Hora é uma comédia. O que é isso de fazer rir as pessoas?
Como é que eu hei de explicar? É uma comédia, mas quem a vê, e quem a lê, repara que… Já disse isto muitas vezes: o humor é aprofundar, não é aligeirar. Acredito que a comédia é uma arte superior e que todos os grandes dramaturgos tinham muito sentido de humor, de Shakespeare a Nikolai Gógol.
Quem a vê, e quem lê a peça, repara que a comédia é paredes-meias da tragédia?
A minha dúvida é se quem não é jornalista vai ter o mesmo tipo de ferida ao ver a peça. Há ali muitas feridas, muita solidão, muitas noites mal dormidas, muito passado, muito medo do futuro. Aquelas personagens estão ali a salvar o jornal de uma espécie de cataclismo que vem de fora.
Isso é assim tão característico do jornalismo? Maria Rueff e Miguel Guilherme, que estão em palco, não sentirão o mesmo no teatro?
Aí está, é isso que eu pretendo. O Miguel Guilherme teve o cuidado de assistir a reuniões do Público e de acompanhar um jornalista do jornal nesses comícios desse canalha que aí anda, o do Chega. Para ver, para ver o que é ir para o meio de um grupo de idiotas. A quem for ver a peça, gostava que lhe acontecesse o que eu gosto que me aconteça a mim: rir, não digo sofrer, mas… chorar, porque não? É para isso que, em geral, serve a literatura. Não tenho a ambição de fazer um espetáculo-choque, não quero que as pessoas fiquem indignadas, mas gostava que tivessem um pequeno terramoto interior, que revelassem empatia.
Estou disposto a lutar com todas as forças, estou disposto a fazer o que for necessário para evitar que Portugal volte a ter censura, um governo de idiotas ou qualquer coisa assim
Pretende que seja também um retrato do estado do mundo?
O que se está a passar no mundo é muito sério. É global, é verdade, os perigos da democracia, o que acontece quando se perde a liberdade e a liberdade de Imprensa, às vezes por caminhos políticos diretos, como foi a PIDE ou a censura, outras vezes controlando o conteúdo e a forma de fazer as coisas, pondo de parte as pessoas mais valentes. Sou um grande admirador de O Inspector, de Gógol, uma peça sobre um farsante que transforma as pessoas, que entra em palco e deixa tudo em roda-viva. É um retrato da Rússia do seu tempo, mas eu gostava que, em Última Hora, também houvesse um bocadinho desse ambiente.
Em Última Hora, é um administrador que entra em palco, parece saber o que fazer para salvar o jornal.
São figuras que aí andam, têm sempre emprego e sabem sempre muito mais do que os outros. Ele está habituado a fazer downsizings. Um dos meus mestres, Tereza Coelho, com quem fui casado, falou-me uma vez de alguém que estava triste, porque o marido tinha chegado a casa muito em baixo, após ter despedido 15 pessoas. E quando a Tereza chamou a atenção para as pessoas que tinham sido despedidas, do outro lado nunca tinham sequer pensado que essa situação era pior. Há uma série de anedotas destas que eu usei na peça, valem por si, são pedaços deste muro que se construiu de desumanidade, de ataque à democracia.
Estamos no meio do furação e, depois disto, tudo passará e assentará?
Espero que sim. Agora, pelo menos, já começámos a convencer-nos de que a Imprensa livre é fundamental para a democracia, já estamos conscientes da importância das notícias bem dadas e assinadas por profissionais. Como é que isto avança? As pessoas vão ter mesmo de se convencer. Estar em Berlim [com uma bolsa de criação literária] também foi importante, porque vi como os alemães estão a avançar, no modo, por exemplo, como começam a cobrar às plataformas digitais, esses corsários, esses piratas que andaram a encher-se de dinheiro, a fazer-se multimilionários à custa do trabalho dos outros, que transformaram em proletários e em desempregados pessoas essenciais.
Mas faz sentido manter a leitura maniqueísta de que a internet é responsável por todos os males de que padece o jornalismo?
Não, não faz. A internet é um meio espantoso de divulgação do nosso conhecimento. Também serve para ver mentiras, falsificações, aldrabices, racismos dissimulados, pornografia. Mas, se só servir para isso, nunca estivemos tão mal. Se for usada para termos acesso à versão original de Os Lusíadas, que está na Biblioteca Nacional, fotografada página a página, é algo maravilhoso.
Como explicar às pessoas que o turbilhão das redes sociais e que as mensagens do WhatsApp não são jornalismo, sem parecer que estamos apenas a defender a nossa dama?
E isso num quadro em que, muitas vezes, o jornalismo é olhado com desconfiança… Como é que convencemos as pessoas? Não sei, não tenho solução, cada um deve fazer a sua parte. Talvez seja uma questão de educação e talvez, espero que não, se isto vier a dar um grande trambolhão… Não acredito nisso e, aliás, estou disposto a lutar com todas as forças, estou disposto a fazer o que for necessário para evitar que Portugal volte a ter censura, um governo de idiotas ou qualquer coisa assim. Como é que isso se faz? Quase que me faz lembrar aqueles tipos, na verdade admiradores do salazarismo e do fascismo, que tentam reduzir o 25 de Abril a uma manobra de capitães que queriam ganhar mais dinheiro. Como podem dizer isso sobre pessoas que arriscaram a vida para mudarem, como disse Salgueiro Maia, o estado a que isto chegou?
É preciso ter esse espírito?
Sim, também temos de ter esse espírito. Eu, pela minha parte, faço o que posso. E fico satisfeito se esta peça levantar algumas dúvidas a quem nunca pensou que, por detrás de uma notícia bem-feita, também está uma pessoa que sofre. Uma pessoa que é igual às outras, mas que tem, vou usar a palavra, uma missão: a missão de informar. Temos mesmo de utilizar estes termos, ainda que eles estejam carregados com um bocadinho de moral.
Sempre se considerou um otimista, apesar de os seus livros estarem cheios de morte. Temos de nos manter otimistas?
Sou otimista, embora não perceba porquê [risos]. A vida triunfa, e a verdade também há de triunfar. Pode é demorar tempo…
São tempos muito contraditórios em que, por vezes, é difícil encontrar lugar para a decência, para usar um termo também carregado de moral?
E, no que diz respeito ao jornalismo, tanto se nega o seu valor como, de repente, se enaltece o seu papel. Aconteceu, por exemplo, quando recentemente o The New York Times revelou as declarações fiscais de Donald Trump. Aí estão: os serviços do jornalismo para sabermos da vida daquele charlatão. O Vicente [Jorge Silva] morreu quando este livro já estava na gráfica, a memória dele, dessas pessoas, esteve sempre presente enquanto eu criava o mundo deste jornal fictício. O Vicente não é o diretor desta peça, mas os grandes jornalistas têm sempre qualquer coisa de maluco, não é? Qualquer coisa de artista, de sonhador, de brilhante, de lunático (e, por vezes, também têm, claro, de mau, de vingativo).
Esta pandemia veio evidenciar as fragilidades do meio cultural português, provocando uma grande crise no setor. O que devemos fazer?
Precisamos de um António Arnaut [considerado o “pai” do SNS] da Cultura. Tal como existe um Serviço Nacional de Saúde (SNS) e um Serviço Nacional de Educação, também tem de existir um Serviço Nacional de Cultura. Isto, dito assim, até tem um ar ligeiramente do tempo da outra senhora, mas, sim, acredito que tem de haver. É necessário arranjar meios para salvar os profissionais da Cultura, que são essenciais à saúde mental dos portugueses, como acontece em todos os países – outra palavra que já não se pode pronunciar – civilizados. Acredito mesmo nisso. E a pandemia apenas demonstrou que nada disso existia.
Tem um romance para sair há já algum tempo. Está pronto?
Já o prometi tantas vezes que pareço o João da Ega, de Os Maias, a dizer que vai escrever Memórias de um Átomo… Estão sempre a meter-se outras coisas pelo meio, mas eu sei que vou escrever aquele livro, chama-se As Melhoras da Morte. Até saiu uma notícia na VISÃO, para aí há dois anos. Já estou envergonhado…
Não deve nada a ninguém…
Isso é que ninguém consegue tirar-me da ideia. Tenho um enorme sentimento de culpa por não estar a fazer aquilo que prometi. Esta peça também esteve programada para sair há mais de um ano, mas tenho a certeza de que teria saído muito pior se não tivesse esperado. Portanto, as coisas saem quando têm de sair. E vai sair agora, justamente, numa altura em que, com uma certa coragem, temos mesmo de pensar que não é perigoso ir ao teatro. Quando estive em Sarajevo [na Guerra da Bósnia, nos anos 90, como repórter do Público], também lá estava a Susan Sontag a fazer a encenação de À Espera de Godot. O teatro não parou – e foi importantíssimo para manter o espírito da cidade.
Nos momentos de crise, é quando ele é mais necessário?
Quando embarquei no avião militar, sabia que ia estar com famílias bósnias. Descobri, depois, que comiam esparguete há sete meses, sem água nem lenha, sem cães nem gatos, claro, percebe-se porquê. E, antes de ir, estava convencido de que ia levar queijos e latas de atum. Tal como o teatro era fundamental…
Mas não é entendido como um bem de primeira necessidade.
Não há coisa mais atual do que isso que diz, agora que estamos sempre a falar dos trabalhadores essenciais e dos trabalhadores não essenciais. O que acabei por levar para Sarajevo foram desinfetantes vaginais, sabonetes, batons e cremes, além de alguns medicamentos. Era disso que aquelas mulheres mais precisavam. Elas precisavam de se sentir humanas! Para mim, essa foi uma lição muito importante. E, agora, com esta pandemia, cheguei a recear que, de repente, tudo se transformasse numa coisa assim, naquele horror a que assisti em Sarajevo. Lembro-me sempre de uma pergunta de Dinis Machado: “Qual é o lado cómico disto?” Parece-me uma regra importante.