A Cristina começava, pelo menos, quinze dias antes. Abriam-se as janelas, demoradamente. O sol entrava, demoradamente, na sala de estar, voltada para o terraço. E as cortinas ondulavam serenas nos reposteiros altos. As pratas brilhavam mais. As toalhas brancas cheiravam mais a linho. E a louça Vista Alegre era, ainda, mais alegre. E os copos de cristal tilintavam mais. E a minha mãe chamava mais vezes pela Cristina. E ela corria pela casa toda. De uma ponta à outra. Uma azáfama. Até ficar tudo puro e sagrado como água-benta.
A dispensa, ao lado da cozinha, cheirava a pão-de-ló e a doces de ervas e açúcar. E na sala de jantar, a mesa abria-se e o carrinho de chá ficava vazio, para pousar as travessas. A cozinha era, então, poucos dias antes, um reino de pequenos saberes. E sabores. No quintal, a terra revolvia-se e os canteiros tinham muitas flores. Até os peixes vermelhos, no lago, pareciam novos.
O pessegueiro, todo cor-de-rosa, vestia-se de novo. Como todos os anos, por aquela altura. O limoeiro ainda tinha limões e as pereiras já não tinham peras. E o quintal cheirava a tangerinas. Depois, a Páscoa, chegava também pelas roupas novas. Para mim e para os meus irmãos. A Cristina também tinha roupa nova e um avental novo. E ficava tão feliz! E nós com ela. Porque a Cristina sorria como se fosse a mulher mais feliz do mundo. Mesmo quando partia alguma coisa, lá em casa. Sorria. E pedia desculpa. E dizia, foi sem querer, minha senhora. E a minha mãe dizia que ela não tinha juízo nenhum. E eu pensava que ter juízo não era importante, quando se sorria assim. Com a boca. E com os olhos. E com as mãos.
Naquele tempo, o que eu mais queria, era sorrir, assim, como a Cristina. Por dentro e por fora. Depois, no dia de Páscoa, de manhã, muito cedo, íamos para o quintal, eu e os meus irmãos. E a minha mãe, à nossa frente, escolhia as flores e os arbustos que podíamos usar para fazer a passadeira para o compasso passar. E, mais tarde, a minha mãe confiou-me essa tarefa. E eu, com uma tesoura, cortava, com muito cuidado, as flores mais débeis. Tirávamos-lhes as pétalas e fazíamos uma espécie de pot-pourri. E as nossas mãos ficavam com o cheiro daquela Primavera.
Depois espalhávamos tudo, em desenhos pouco geométricos, deste o portão, até à porta do hall da entrada. O Vinho do Porto já estava na mesa do centro da sala de estar, quando ao longe se ouvia a sineta do compasso pascal. Depois, a minha mãe colocava dinheiro num envelope e pousava-o junto da taça das amêndoas. O meu pai arranjava o nó da gravata e colocava um cartão-de-visita, dentro do envelope. A minha mãe voltava a abrir o envelope e tirava o cartão. E dizia que quando se dá, ninguém precisa saber quem deu. E voltava a fechar o envelope. Definitivamente.
E o tilintar da sineta agudizava-se mais e mais, até o som de metal entrar todo dentro da casa. Os meus pais beijavam a cruz. Eu e os meus irmãos e a Cristina beijávamos a cruz e o Senhor Padre dizia sempre algumas palavras, como se rezasse. Benzia-nos a nós e aos móveis e a tudo em volta. Depois bebiam um cálice de vinho, despejavam as amêndoas para um saco de pano e pegavam no envelope. A sineta voltava a manifestar-se, estridente, até à próxima casa. E depois, antes do almoço, íamos à missa.
E quando voltávamos o meu pai ficava a ler o jornal como se fosse um dia qualquer. Os meus irmãos brincavam. A minha mãe e eu púnhamos a mesa. Uma mesa nova, como as nossas roupas. E com flores no centro. Da cozinha, a Cristina fazia caretas, quando a minha mãe não via. E sorria. Como se fosse a mulher mais feliz do mundo. Como se soubesse que em todas as Páscoas, mesmo as que não me chegam pelos rituais, eu me lembraria sempre do seu sorriso.
Esta crónica é para ela. Onde quer que esteja.
Boa Páscoa!