Não haverá muita gente capaz de ver o documentário A Marcha dos Pinguins (no original, La Marche de L’Empereur), de Luc Jacquet, rodado nos arredores da base científica francesa Dumont d’Urville, na Terra de Adélia, na Antártida, sem se afligir várias vezes com a sobrevivência dos pinguins-imperadores.
Ao longo de catorze meses, o realizador francês e a sua equipa acompanharam o acasalamento de uma colónia com cerca de sete mil indivíduos da espécie Aptenodytes forsteri que vive na região mais inóspita do mundo.
A longa-metragem, que ganhou um Oscar, em 2006, mostra como cada casal se revezava, vigilante, durante a reprodução que inclui dias sem alimentos. E, se o momento em que vemos uma fêmea passar o ovo ao macho é emocionante, a longa marcha do imenso grupo arrepia por parecer não ter fim.
Viver em condições extremas leva os animais a adotarem estratégias que ainda hoje surpreendem os cientistas. Na Ilha do Rei Jorge, a oeste da Terra de Adélia e a apenas 120 quilómetros da Antártida, uma equipa de investigadores descobriu que os pinguins-de-barbicha (Pygoscelis antarcticus) têm micro-sonos que duram escassos segundos. Só assim conseguem manter-se constantemente atentos aos predadores.
Os autores estudaram 14 pinguins que estavam a incubar os seus ovos, numa colónia com cerca de 3 mil casais. Utilizando a monitorização remota por eletroencefalograma, mediram a atividade relacionada com o sono de ambos os hemisférios cerebrais. Mediram ainda os movimentos corporais e a postura em terra, e os mergulhos no mar.
Ao longo dos onze dias de observação, verificaram que as aves adormeceram mais de 10 mil vezes por dia. Dormiram durante apenas cerca de 4 segundos de cada vez, nunca tiveram um sono prolongado (o mais longo registado foi de 34 segundos) e, mesmo assim, conseguiram acumular cerca de 11 horas de sono por dia.
“O seu sucesso reprodutivo sugere que esta estratégia lhes permite obter o sono de que necessitam”, lê-se no estudo agora publicado na revista Science. “Isto é o mais impressionante e interessante: o facto de conseguirem dormir de forma fragmentada continuamente, dia e noite”, diz o autor principal, o ecofisiologista Paul-Antoine Libourel, do Centro de Investigação em Neurociências de Lyon, em França. “É um estado permanente – vivem entre a vigília e o sono.”
Os micro-sonos são habitualmente olhados com apreensão e até considerados perigosos, sublinham os autores, “mas se proporcionarem benefícios cumulativos, poderão ser úteis em animais que, de outra forma, precisam de estar continuamente vigilantes”.

Foi essa a hipótese de Libourel e os colegas quiseram testar. E uma das conclusões a que chegaram com este estudo foi que os sonos das aves tornavam-se ainda mais curtos e mais frequentes quando elas estavam a cuidar dos ovos, “talvez por precisarem de estar mais alerta durante a incubação”, dizem os investigadores.
Os autores sugerem que, se estes micro-sonos dos pinguins-de-barbicha podem ser restauradores, talvez também outros animais dependam deles para conseguir descansar em situações em que precisam de se manter vigilantes.
“Não sabemos se os benefícios dos micro-sonos são idênticos noutros mamíferos, como os ratos e os seres humanos”, diz Libourel, “mas o estudo mostra que pelo menos uma espécie é capaz de dormir assim e comportar-se normalmente, por isso não vejo porque é que outras espécies não poderiam desenvolver a mesma adaptação ao sono.”
Os pinguins-de-barbicha identificam-se facilmente pela fina faixa de penas pretas que têm de orelha a orelha, logo abaixo de queixo, e habitam sobretudo na Península Antártica e em ilhas do Atlântico Sul. São bastante diferentes dos pinguins-do-cabo (Spheniscus demersus) que conhecemos bem por exemplo do Jardim Zoológico de Lisboa
A observação destas 14 aves da Ilha do Rei Jorge começou no início de dezembro de 2019. Faz sentido, uma vez que os pinguins-de-barbicha passam o inverno a norte da zona de gelo e regressam à sua colónia entre outubro e novembro. Os ovos (dois) são postos no final de novembro, e machos e fêmeas participam no período de incubação, que vai de 33 a 36 dias. Os primeiros turnos duram 5 a 10 dias, mas, à medida que se aproxima a data da eclosão, tornam-se mais curtos.
Nos anos em que persiste um extenso gelo marinho perto das colónias, o êxito reprodutivo desta espécie de pinguins é menor, porque fica dificultado o acesso ao mar onde os futuros pais procuram os alimentos. Os principais predadores no mar são as focas-leopardo. Em terra, à coca dos ovos e das crias, estão os mandriões-antárticos (Stercorarius antarcticus).
Os pinguins agora observados demoravam cerca de nove horas em cada viagem ao mar, onde passavam 3% do tempo a descansar, à superfície, sem nunca adormecerem. Nos ninhos, as suas ondas cerebrais abrandavam para um padrão típico das aves adormecidas, mas só durante alguns segundos.

Esta estratégia dos micro-sonos é, grosso modo, um sinal de inteligência (no sentido de cognição). Afinal, a inteligência é a adaptação ao meio, aprendemos com Manuel Magalhães Sant’Ana, doutorado em Ciências Veterinárias e especialista europeu em bem-estar animal, entrevistado pela VISÃO a propósito da consciência dos animais.
“Se os micro-sonos são mais do que tentativas falhadas de iniciar o sono e cumprem de facto as funções do sono, então confiar neles pode ser uma estratégia adaptativa em circunstâncias ecológicas que requer uma vigilância constante”, lê-se no estudo citado.
No caso do ser humano, os cientistas não estão de acordo quanto aos benefícios do sono, que tanto é visto como essencial para “limpar” o lixo celular, como para permitir que o cérebro “afine” as suas ligações. É possível, até, que estejamos a pensar nele ao contrário, põe a hipótese Vladyslav Vyazovskiy, um neurocientista da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que não esteve envolvido neste estudo dos pinguins.
O sono pode ser o padrão do cérebro animal, e os investigadores deveriam tentar explicar por que razão os animais acordam quando o fazem, disse Vyazovskiy ao The New York Times. “Basicamente, passamos a vida a dormir e só acordamos quando é necessário.”
Certo é que dormir é imprescindível à nossa sobrevivência, e que mesmo uma curta sesta pode apresentar benefícios. Segundo um dos estudos mais recentes, publicado em junho deste ano, no jornal científico Sleep Health, dormir um pouco durante o dia pode ajudar a proteger a saúde do cérebro.
Uma equipa de cientistas, da Universidade College London, no Reino Unido, e da Universidade da República do Uruguai, concluiu que os cérebros das pessoas que fazem sestas regularmente são 15 centímetros cúbicos maior – o que equivale a retardar o envelhecimento entre três a seis anos. “Os benefícios surgem imediatamente após uma breve sesta (por exemplo, 5-15 minutos)”, lê-se no estudo, e podem “durar entre uma e três horas”.
São históricas as sestas de Mário Soares (1924-2017), que durante a campanha para umas Presidenciais fez um pedido peculiar a uma eleitora já idosa, numa pequena aldeia portuguesa. “Soares pediu à velhinha para dormir a sesta em casa dela”, relembrou Miguel Sousa Tavares. Ninguém estranhou, por isso, quando a Associação Portuguesa dos Amigos da Sesta, fundada pelo alentejano José Prates Miguel, entre outros defensores da prática, o convidou para presidente honorário.
Mais recentemente, ficámos a saber que Cristiano Ronaldo trocou as padronizadas 8 horas de sono por noite por curtos sonos ao longo do dia. A rotina foi-lhe sugerida por Nick Littlehales, um coach do sono que já trabalhou com pilotos, cirurgiões e grandes clubes de futebol e de básquete, e que podemos conhecer melhor nesta entrevista.
O internacional português faz cinco ou seis ciclos de 90 minutos de sono por dia. “Não é uma sesta, isso é para os velhos que estão a ver televisão. É uma maneira de dormir menos e de melhorar a recuperação”, disse o especialista ao site Football Whispers, lembrando que, “antes das luzes artificiais, as pessoas dormiam por períodos curtos”.
Uma vez que não estamos dependentes da luz natural, tudo muda. A não ser que tenhamos de estar atentos a perigos exteriores, claro.