Um incidente de recusa da magistrada, uma exposição à procuradora-geral da República, visando a instauração de um procedimento disciplinar, e uma queixa-crime, que corre termos na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, foram avançados pelo tenente-coronel Mário Maia, diretor da “Prova Zero” do curso 127 dos Comandos – na sequência da qual morreram os instruendos Hugo Abreu e Dylan Silva, ambos com 20 anos -, contra a procuradora Cândida Vilar, titular do inquérito aos acontecimentos de 4 e 5 de setembro de 2016 no Campo de Tiro de Alcochete. O militar tenta tudo para torpedear o processo.
O caso começou com um despacho de Cândida Vilar, a 16 de novembro de 2016, que fundamentava os mandados de detenção de sete militares dos Comandos, entre os quais Mário Maia, para serem presentes a um juiz de instrução criminal e submetidos a primeiro interrogatório judicial de arguido. Lia-se no documento, por exemplo, que “a atuação dos suspeitos” revelava “personalidades deformadas, (…) com vista a criar, como criaram, um ambiente de intimidação e de terror, bem como sofrimento físico e psicológico nos ofendidos, sujeitando-os a tratamento não compatível com a natureza humana (…)”.
A procuradora Cândida Vilar escrevia depois no despacho que estava “manifesto” nos autos que “os princípios e valores pelos quais se regem os suspeitos traduzem-se no desprezo pela vida, dignidade e liberdade da pessoa humana, tratando os instruendos como pessoas descartáveis”. Entendia, assim, que se encontravam verificados “os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação do inquérito”, associando, “à gravidade e natureza” dos ilícitos, a “personalidade dos suspeitos, movidos por ódio patológico, irracional contra os instruendos, que consideram inferiores por ainda não fazerem parte do Grupo de Comandos, cuja supremacia apregoam (…)”.
Um “elevado grau de premeditação” foi atribuído pela magistrada aos suspeitos, “já que todos tinham conhecimento de que com as elevadas temperaturas que se faziam sentir” naquele dia 4 de setembro de 2016, “e a privação de água, os instruendos não estavam em condições físicas e psíquicas de prosseguir a instrução (…)”. A procuradora argumentava que, naquela fase processual, existiam “exigências de prova a realizar, sendo que os suspeitos, em liberdade, poderão inviabilizar e perturbar o decurso das investigações, pressionando os ofendidos e outros instruendos para que não prestem depoimento, face à situação de subordinação dos mesmos, mantendo-se, assim, o clima de impunidade em que os suspeitos têm vivido”.
OPORTUNIDADE PARA O CONTRA-ATAQUE
A linha de investigação seguida por Cândida Vilar ficava também clara naquele despacho. Os crimes em questão, sublinhava, “são estritamente militares” porque “põem em causa os interesses militares da defesa nacional e as missões internacionais ao privarem as Forças Armadas dos militares que falecem ou que ficam com lesões graves na sequência dos cursos”. O objetivo era o de colocar o processo sob a alçada do Código de Justiça Militar, que pune com penas de prisão bem mais severas os ilícitos em averiguação do que o código civil.
Mas a procuradora sofreria um forte revés. A juíza Cláudia Pina, do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, à qual os sete militares detidos foram presentes, discordou de quase tudo o que Cândida Vilar alegou no despacho em causa. Cláudia Pina considerou “no mínimo rebuscado” o argumento relativo aos interesses militares. Para a juíza, não se afigurava que a “situação espelhada nos autos e a morte dos ofendidos”, negligente na sua perspetiva, pudesse “lesar de modo relevante a defesa do Estado”. Por isso, requalificou os indícios dos crimes de acordo com o Código Penal civil.
Também as motivações atribuídas pela procuradora aos suspeitos foram classificadas por Cláudia Pina como “claramente subjetivas”, face à “prova produzida até à data no inquérito”. Entendeu, pelo contrário, que era “claramente o objetivo dos arguidos, ainda que algo distorcido em alguns casos, preparar os instruendos para a guerra, para o primeiro embate numa frente de combate”. Mas admitiu que houve arguidos que “não respeitaram as condições de segurança que estavam previstas no guião da prova, não fornecendo aos instruendos ofendidos água suficiente, como não cuidaram de assegurar que a prova se desenvolvesse em condições de segurança”.
Concentrados na prisão militar de Tomar, pela Polícia Judiciária Militar, que executou os mandados de detenção, os sete arguidos seriam postos em liberdade pela juíza de instrução, a 18 de novembro de 2016, com a medida de coação mais leve, o Termo de Identidade e Residência (TIR). Só o capitão-médico Miguel Domingues, além do TIR, ficou temporariamente suspenso de exercer funções em unidades de saúde militares. E, no seu despacho, a juíza não associou o diretor da “Prova Zero”, tenente-coronel Mário Maia, à prática de qualquer crime.
Estava aberta a oportunidade de aquele militar, através do seu advogado, Alexandre Lafayette, contra-atacar Cândida Vilar, suscitando um incidente de recusa da procuradora. A magistrada, alegou Alexandre Lafayette em nome do seu constituinte, demonstrou “à saciedade” no despacho de novembro de 2016 que “considera os Comandos (…) uma associação de criminosos”. O “desprezo pelos visados nos mandados de detenção é (…) irretorquível”, escreveu ainda o advogado, para de seguida perguntar: “Quem padece, aliás, de ‘ódio patológico’ e é ‘irracional’ ao cuidar da ‘personalidade dos suspeitos’?”
Para o representante do tenente-coronel, a procuradora Cândida Vilar “afrontou (…) os princípios da imparcialidade, da correção, da urbanidade, do respeito, enfim, cometeu os pecados que atribui aos arguidos; maxime, despreza os princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana (…)”. Mas o incidente de recusa de Cândida Vilar seria chumbado pela procuradora-geral adjunta Lucília Gago, na altura coordenadora do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa e, por isso, sua superior hierárquica.
‘GUERRA’ EM CURSO
O tenente-coronel Mário Maia e o seu advogado não atiraram a toalha ao chão. Numa exposição à procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, alegaram que a procuradora-geral adjunta Lucília Gago devia ter-se considerado impedida de despachar o pedido de recusa e que, ao fazê-lo, incorreu numa inconstitucionalidade. Como teve conhecimento prévio dos mandados de detenção antes do seu envio à Judiciária Militar, seria obrigada a remeter a decisão para a superior hierárquica, no caso a procuradora-geral distrital de Lisboa, Maria José Morgado.
A referida exposição daria lugar a uma averiguação pré-disciplinar, mas o relator do processo acabou por apenas propor uma “advertência” à procuradora Cândida Vilar, votada favoravelmente no Conselho Superior do Ministério Público, e incidindo no “dever de zelo” a que a magistrada está obrigada. Cândida Vilar terá ignorado recomendações de Lucília Gago para que modificasse determinadas expressões no despacho de novembro de 2016.
Paralelamente, o incidente de recusa subiu à Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, transformando-se num inquérito-crime, conduzido pela procuradora-geral adjunta Brites Reis (e, até agora, sem arguidos constituídos), com acompanhamento do desembargador José Adriano, da Relação de Lisboa, que assegura os procedimentos inerentes ao juiz de instrução criminal. [Os procuradores só podem ser inquiridos e julgados, se for esse o curso do processo, nos Tribunais da Relação.]
Em maio de 2017, o tenente-coronel Mário Maia pediu para se constituir assistente nesse processo, o 21/17.4 TRLSB, o que seria deferido pelo desembargador José Adriano. No requerimento que o advogado do militar elaborou para o efeito, são atribuídos à procuradora Cândida Vilar os crimes de prevaricação e de denegação de Justiça.
Mas no mês seguinte, junho, Cândida Vilar deduziu a acusação no processo dos Comandos, atribuindo, por sua vez, a 19 arguidos, oficiais e sargentos, o crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física (em graus diferentes), que o Código de Justiça Militar pune com prisão de oito a 16 anos. E na última segunda-feira, 9 de abril, a juíza de instrução criminal Isabel Sesifredo, em completa oposição à colega Cláudia Pina, corroborou o libelo acusatório (incluindo a colocação do processo no plano do “crime estritamente militar”) e pronunciou para julgamento os 19 arguidos, indiciando-os por um total de 539 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, que o Código de Justiça Militar pune com prisão de oito a 16 anos.
O tenente-coronel Mário Maia é um dos arguidos com mais crimes atribuídos – 26. Já o efeito que o inquérito 21/17.4 TRLSB pode ter sobre a acusação e a pronúncia do processo dos Comandos é, por agora, uma incógnita.