Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos é tratado por muitos americanos como ‘Scranton Joe’, uma referência ao seu local de nascimento, a cidade industrial de Scranton, no estado de Pensilvânia, mas também uma alusão à sua conduta pública e ao seu estilo característico de comunicação política. Scranton é uma típica cidade do rust belt, uma expressão americana que remete para os grandes centros industriais no nordeste do país. Nos anos 50, era uma área importante para as indústrias do aço, carvão e ferrovia, mas, desde então, tem vindo a declinar gradualmente em termos económicos e populacionais, especialmente devido à reconfiguração das prioridades orçamentais dos Estados Unidos para lá da indústria pesada.
Joe Biden nasceu em 1942, e teve um lugar na primeira fila para o empobrecimento da sua cidade natal e de toda a região. O próprio pai de Biden passou por graves dificuldades financeiras, tendo-se visto obrigado a partir de Scranton à procura de melhores condições de vida. Esta experiência marcou profundamente o presidente dos Estados Unidos, revelam os seus conselheiros mais próximos, e é também a fonte do que muitos apontam como uma das grandes vantagens de Biden na arena política: o presidente é um homem comum, utiliza linguagem acessível, e percebe os problemas dos cidadãos comuns.
Esta empatia sentida pelos eleitores, aliada à sua forma de estar, conduz Biden a falar frequentemente com o coração na boca, de uma forma pouco polida e demasiado espontânea, o que normalmente causa bastante embaraço e trabalho suplementar à sua equipa política, sendo muitas vezes obrigada a explicar à imprensa que Biden não se terá expressado bem, e que não era exatamente aquilo que ele queria dizer.
Um ótimo exemplo desta dinâmica ocorreu no sábado passado, dia 26, quando o Presidente americano discursou em Varsóvia, na Polónia, após ter participado em três cimeiras extraordinárias no continente europeu. Já perto do final do discurso, cujo objetivo era traçar uma linha clara entre os governos democráticos e autocráticos e condenar veementemente a invasão da Ucrânia, Biden proferiu uma frase supostamente improvisada: “Por amor de Deus, este homem não pode continuar no poder”. A exasperação refere-se a Vladimir Putin, Presidente da Rússia, e precipitou muita especulação entre os comentadores de política externa. Alguns pensaram que a posição oficial defendida pelos Estados Unidos mudara, e que Washington apoiava agora abertamente a mudança de regime em Moscovo. Alguns minutos depois, a equipa de Biden multiplicou-se em emails e declarações aos jornalistas para tentar corrigir o mal-entendido. Afinal, a posição dos Estados Unidos ainda é a mesma, um parecer secundado pelo próprio Anthony Blinken, o secretário de Estado norte-americano, quando garantiu no dia seguinte ao discurso de Varsóvia que “não temos uma estratégia de mudança de regime na Rússia, nem em mais lado nenhum”.
A verdade é que Biden têm um longo historial de lapsos de retórica semelhantes a este, alguns deles ainda nos seus dias como senador do estado do Delaware, e alguns deles com repercussões graves.
Pré-campanha de 2006
Em 2006, quando estaria a ponderar lançar uma campanha às eleições presidenciais de 2008, Biden apareceu num programa do canal americano C-SPAN, uma estação dedicada sobretudo a acompanhar os acontecimentos da política norte-americana, onde exaltou o quão popular era entre a comunidade indiana no estado do Delaware. Um típico exercício de autopromoção política que não seria motivo de notícia para qualquer outro putativo candidato à presidência. Mas não para Joe Biden.
O que ele disse, exatamente, foi: “Temos uma grande relação. Em Delaware, o maior crescimento populacional é o dos indianos-americanos, que vêm da Índia. Não podes ir a um 7-Eleven ou um Dunkin’ Donuts sem um ligeiro sotaque indiano. Não estou a brincar.” A comunidade indiana dos Estados Unidos rotulou o comentário de “embaraçoso” que alimentava os “estereótipos”. Logo a seguir, a porta-voz de Biden defendeu que o ex-senador disse apenas que “há uma comunidade indiana-americana vibrante em Deleware há décadas”, que “contribui significativamente para a economia nacional”.
As consequências do incidente não foram claras, mas o que é certo é que Biden teve uma prestação péssima nas primárias do partido Democrático dos Estados Unidos dois anos depois – o sistema eleitoral para eleger o candidato a presidente –, não conseguindo eleger qualquer delegado.
Dia de São Patrício
Já em 2010, numa declaração para os jornalistas aquando da receção ao primeiro-ministro Irlandês, Brian Cohen, no dia de São Patrício, Biden começou por oferecer os seus sentimentos pela morte de um dos pais de Cohen. Problema: Biden mencionou o progenitor errado.
“A mãe de Cohen viveu em Long Island por mais de 10 anos. Que a sua alma descanse em paz.” Depois de uma pausa, continuou: “Mas ela está… espera. A sua mãe ainda está viva. Foi o seu pai que morreu. Que a sua alma descanse em paz. Tenho de acertar nestas coisas”. O equívoco gerou gargalhadas um pouco por toda a audiência, incluindo do próprio primeiro-ministro Irlandês e de Barack Obama, o então Presidente dos Estados Unidos, que ladeavam Biden no palco.
Antecipação a Barack Obama
Um dos temas mais debatidos na campanha presidencial americana de 2012 foi o da legalidade do casamento homossexual. Na altura, Barack Obama procurava o seu segundo mandato e no seu caminho estava Mitt Romney, o atual senador do estado de Utah e candidato do partido Republicano à presidência em 2012. A linha oficial de Obama sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo oscilou bastante ao longo da sua carreira política, de apoio tímido à rejeição contundente, passando pela incerteza estratégica. Foi mesmo esta incerteza que Obama quis cultivar antes de lançar a campanha para a eleição de 2012, segundo os seus conselheiros políticos. Terá apostado que uma tomada de posição convicta quer a favor, quer contra, poderia alienar uma fatia significativa da população americana. A estratégia tinha funcionado na perfeição, com disciplina comunicativa e programática. Mas depois chegou a vez de Biden falar.
Numa entrevista ao canal americano NBC, o jornalista David Gregory pressionou o então vice-Presidente dos Estados Unidos sobre o casamento homossexual, um tópico sobre o qual Biden sempre se confessou reticente. A pergunta foi simples e direta: “A sua opinião sobre o assunto evoluiu nos últimos anos?” Biden hesitou, mas foi também claro na sua resposta e expressou o seu apoio pela legalização. Apercebendo-se que se antecipara ao seu Presidente, tentou corrigir o erro ao enfatizar que estava simplesmente a manifestar a sua opinião pessoal e que seria Obama a tomar a decisão final. Mas o mal estava feito.
A reação dos média americanos foi avassaladora, e deixou a equipa do Presidente sem saída possível. De facto, já estava planeado um evento oficial onde Obama iria comunicar o seu apoio inequívoco pela legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas, devido ao deslize de Biden essa declaração teve de ser antecipada.
Discurso em Varsóvia
O já mencionado discurso no pátio do Castelo Real de Varsóvia foi só o mais recente exemplo desta particularidade do atual Presidente norte-americano. Muitos comentadores apontaram para a solenidade e qualidade retórica das palavras proferidas por Biden, mas todo o discurso acabou ofuscado por uma das frases finais: “por amor de deus, este homem não pode continuar no poder”.
Um discurso que visava demonstrar a unidade no seio da NATO e da Europa, teve exatamente o efeito oposto ao dividir os aliados ocidentais, ainda que de forma ténue, que rapidamente se demarcaram do Presidente norte-americano. Emmanuel Macron, o presidente de França, reagiu no dia seguinte quando disse que “eu não utilizaria esse tipo de linguagem”, acrescentando também que uma condição fundamental para o sucesso da via diplomática passava por “não escalar, nem com palavras, nem com ações”.
Richard Haas, Presidente do ‘think tank’ americano Council on Foreign Relations – um dos mais conceituados fóruns globais de política externa –, criticou Biden através da rede social Twitter, dizendo que o Presidente dos Estados Unidos “tornou uma situação difícil ainda mais difícil e uma situação perigosa ainda mais perigosa. Isso parece-me óbvio”.
Biden disse aos jornalistas na Casa Branca que não tenciona pedir desculpa pelo que disse, admitindo que se tratou de uma “expressão de repúdio moral”, e não um apelo à mudança de regime no Kremlin. “Isto é ridículo. Ninguém acredita que eu estava a falar sobre depor Putin. Ninguém acredita nisso”. Mas muitos analistas acreditam que este descuido de Biden poderá ter consequências graves, ao levar Putin a desconfiar das intenções reais de Washington, adiando uma potencial solução diplomática para o conflito. Dimitri Peskov, o porta-voz de Kremlin, disse que a frase deixou os russos “preocupados” e iriam continuar a “monitorizar” as futuras declarações de Biden com “muita atenção”.