Vindo de quem vem, ainda surpreendeu mais. José Riço Direitinho, nascido em Lisboa em 1965, estreou-se na literatura com o livro de contos A Casa do Fim, em 1992. Ou antes ainda, no suplemento (do Diário de Notícias) DN Jovem, onde exercitou um estilo bem marcado que nos transportava para um Portugal rural, entre aldeias, padres, aguardente de zimbro e o cheiro de ervas aromáticas variadas. Em 1998, já depois de publicados os romances Breviário das Más Inclinações e Relógio do Cárcere (que nos apresentaram a aldeia ficcional Vilarinho dos Loivos, retomada noutros textos), era um dos pontas-de-lança da representação portuguesa na Feira do Livro de Frankfurt, dedicada, nesse ano, à nossa literatura. Engenheiro agrónomo de formação, dedica-se hoje profissionalmente à escrita (assina textos sobre livros no Ípsilon, suplemento do Público, e na revista Ler). Há 13 anos sem publicar (desde Um Sorriso Inesperado, de 2005), regressa inesperadamente com O Escuro que Te Ilumina (Quetzal). As suas páginas estão cheias de sexo – descrito de forma realista com recurso tanto a habilidosas curvas estilísticas como a um vocabulário bruto que não foge ao calão mais vulgar – praticado nos mais variados lugares, incluindo aqueles, na Grande Lisboa, onde as “pessoas com que nos cruzamos todos os dias na rua” enfrentam transgressões e o seu lado “dos medos, dos precipícios, dos abismos”. A metamorfose de um escritor, na primeira pessoa.
A pessoa que escreveu A Casa do Fim (1992) e Breviário das Más Inclinações (1994) é a mesma que agora lançou este O Escuro que Te Ilumina?
É a mesma, sim, com mais vinte e tal anos de vida. E o facto de O Escuro que Te Ilumina ser um livro diferente tem que ver com isso mas não apenas isso… Sempre tive alguma facilidade em escrever em vários estilos. Já o tinha feito no Histórias com Cidades [de 2001] em que evitava repetir-me e não quis continuar no registo rural das paisagens bucólicas. Foi um desafio. Depois destes anos todos sem publicar, o que não significa sem escrever, apareceu-me o exercício de fazer um texto longo para a revista Ler… E a seguir fiquei a pensar se aquela voz, aquele estilo que usei ali, não serviria para um romance, uma coisa mais longa.
Foi, também, um desafio?
Sim. Não apenas no estilo mas também no tempo… Decidi que queria escrever um livro rapidamente, em poucos meses. Não queria entrar num mesmo registo de ir adiando, escrever hoje uma página, para a semana mais duas… Impus-me um trabalho diário, de muitas horas. Só assim foi possível chegar ao fim deste livro. Tenho mais três romances começados…
Em termos literários, consegue reconhecer pontes entre o Riço Direitinho do DN Jovem, dos contos d’A Casa do Fim e este d’O Escuro que te Ilumina?
Consigo. Há, aliás, uma história neste livro, o episódio com a jovem juíza, em que a mão me fugiu para esse meu registo: um sábado de manhã de nevoeiro, uma igreja vazia numa aldeia perto da Meda… É o estilo do Breviário. A mesma linguagem, o mesmo ambiente. Gostei de escrever isso, mas tive de me conter para não ir por ali fora, porque este livro não tinha aquela voz. Este livro exigia, aliás, duas vozes: uma romântica, talvez ultrarromântica, e outra num registo muito cru e descritivo.
Outra ponte é uma certa obsessão com os cheiros, as plantas, os perfumes, que também se encontra aqui. É o seu lado de engenheiro agrónomo?
Sim, a questão dos cheiros… Neste livro aparece logo aquela frase da personagem a dizer “je suis un nez” [“sou um nariz”] e a história dos perfumes. Aí, está lá o Risso, sim [José de Risso, espécie de alter ego do escritor, era o protagonista do romance Breviário das Más Inclinações]. E diria que se encontra o Risso também num lado religioso. Apesar de este livro poder ser visto como pornográfico, entre aspas, ou erótico, eu vejo nele alguma religiosidade. Não é em vão que a personagem veste, de vez em quando, uma batina de padre; há referências a São Sebastião, a São João… Há todo um lado ritual, religioso, que acompanha este livro e isso era também uma característica da personagem José de Risso. No Breviário e nos contos há muita dessa religiosidade, mais telúrica do que aqui.
O José Riço Direitinho tem mesmo essa propensão para os cheiros, podia ser um “nez”? Escreve como quem sabe do assunto…
Não sei se podia. Mas as minhas memórias mais antigas não estão tanto associadas a factos mas mais a cheiros. Não o facto, mas o olfato. É a partir dos cheiros que eu acedo às memórias mais antigas.
Durante mais de uma década, foi o típico exemplo do escritor que não escreve, ou que pelo menos não publica. O facto de profissionalmente se ter virado para a literatura, como crítico literário, teve que ver com isso?
Sim, teve muito que ver com isso. Até porque me baralha muito os estilos. Lia um livro ou dois por semana. E o meu trabalho de escrita é muito lento, preciso de duas horas só para entrar naquilo… O facto de fazer crítica como trabalho obriga-me a mudar a agulha, como nos comboios, muitas vezes, para conseguir voltar ao meu estilo… E eu não tinha esse tempo. Para escrever a sério, preciso, no mínimo, de seis a sete horas por dia, e se isso resultar em meia página já fico muito contente. Tenho de ter muito cuidado para que o estilo de outros escritores não se cole ao meu. Tenho uma grande facilidade em apanhar estilos e, às tantas, não sei o que é meu e o que é dos outros… Mas, em termos mais psicológicos, houve outras razões para não publicar: eu dizia que escrevia para que gostassem de mim e, a partir da altura em que começaram a gostar de mim por causa dos livros, eu passei a chatear-me com isso. Pode parecer contraditório, mas passei a pensar algo como “não tenho de precisar dos livros para que gostem de mim; os outros não escrevem e gostam deles”.
Pensou “agora vou experimentar sem escrever”…
Quase isso… A escrita, para mim, não é um talento, é uma habilidade, como os cãezinhos que saltam pelo meio de um arco de fogo. É uma coisa que se aprende, que se pratica.
Como um desporto?
É como um desporto levado a sério, sim. Uma coisa que exige muito treino. Aquilo a que o [António] Lobo Antunes chamava, e chama, “fazer a mão”, que é o que também fazem os pianistas e os cirurgiões. Escrever exige muita paciência, tempo e trabalho. Quanto ao talento… a importância não é grande.

“A devassidão dos outros comove-me”, escreve o protagonista d’O Escuro que Te Ilumina (Quetzal, 144 págs., €15,50)
Há muitos escritores citados neste livro que são importantes para si, fazem parte das referências do José RiçoDireitinho. Dar ao protagonista do romance o estatuto de um académico na área da literatura permitiu-lhe situar-se numa área próxima da sua e convida a alguma confusão entre autor e personagem. Faz, aliás, pensar no conceito de “autoficção” de um escritor que lhe é muito caro, também citado no romance, o norueguês Karl Ove Knausgård. Há um lado de autoficção no seu livro?
Sim. Aliás, acho que toda a ficção é autoficção. Aquilo a que chamamos mesmo autoficção está naquelas partes em que decidimos que não nos escondemos. Sempre que escrevemos, estamos a escrever sobre nós. Há aqui autoficção, sim. Não é um diário meu, longe disso, mas aquela personagem também sou eu. A escolha dessas citações teve a ver, também, com alguma preguiça ou facilidade… Recorrendo ao que eu conhecia melhor era mais fácil entrar por esse lado das referências, citações, do pensamento.
E convida o leitor a essa ambiguidade, confusão entre autor e personagem…
De uma maneira ou de outra, recorri a essa chave: ao ter partes de autoficção, era-me muito mais fácil avançar. Ficcionando mas sem deixar de estar a falar sobre mim.
Uma opção arriscada, com este livro em particular…
Decidi não pensar nisso e não ter nenhuma censura na escrita deste livro.
O tal texto escrito para a Ler tinha um lado de artigo jornalístico sobre certos lugares do sexo em Lisboa que exigiu algum trabalho de campo. Como foi?
Era uma reportagem para a Ler, sim, mas que não podia ser muito jornalística, dada a natureza da revista. Tinha de ser um texto algo literário. Ocorreu-me a ideia de um texto em forma de diário, apesar de na revista não ter saído assim. Visitei esses sítios, sim. O que me interessou foi perceber na vida daquelas pessoas, exatamente as mesmas que se cruzam connosco na rua, aquele lado escuro. Um lado que todos temos: dos medos, dos precipícios, dos abismos… Entrar naquele mundo onde nada de especial acontece, não há razão para medos, só acontece o que as pessoas querem que aconteça, deu-me uma outra visão das pessoas.
O medo vem de um lado de fragilidade, da exposição…
Sim, mas depois de se conhecerem os ambientes, percebe-se que não acontece nada de mais. Há sempre respeito pelo outro. Mesmo naquelas coisas com ar mais selvagem, como o dogging, feito em parques de estacionamento, há regras de conduta, e ninguém passa uma certa linha. Até porque as pessoas sabem que se o fizerem há o risco de aquilo acabar e ninguém mais lá aparecer… Este livro pode ser lido como uma espécie de retrato de uma solidão desesperada. Mas, para mim, não é só sobre isso. É, também, uma história de amor incondicional.
Nessas suas incursões em clubes de sexo ou parques de estacionamento, houve lugar para grandes surpresas, como numa espécie de mundo escondido que se revela?
Houve alguma surpresa no tipo de pessoas que frequentam estes sítios. Encontrei, por exemplo, um tipo famosíssimo que, se quiser, estala os dedos e tem cem mulheres atrás dele a fazer dogging, a chegar-se aos carros com a cara escondida…
Como é que o reconheceu?
Uma vez, começou a rir-se, caiu-lhe o cachecol e vi-lhe a cara. Percebia-se que não era uma pessoa comum, até pelo carro que usa. Encontrei modelos e ex-modelos, o que aparentemente não faz muito sentido; achamos estranho uma estrela pop andar de pila na mão a chegar-se aos carros… Isso fez-me pensar: porque é que pessoas como aquele tipo andam ali? Acho que o que procuram é responder à pergunta “se eu não fosse conhecido como é que seria a minha vida?”. As pessoas que ali vão têm uma vida perfeitamente comum, socialmente normal, mas querem viver aquele seu lado sem censuras e restrições em ambientes aceitáveis, hoje, na sociedade.
Associamos a revolução sexual no mundo ocidental aos anos 60, quando Portugal ainda estava mergulhado no Estado Novo; não muitos anos depois do 25 de Abril chegou o fantasma da sida. Na relação com o sexo, somos um país diferente? Há uma revolução por fazer?
Sim. Há comportamentos muito machistas, por exemplo. Eu acho que o desejo nos homens e nas mulheres não é muito diferente. No entanto, quando se fala disso, há aquela tendência de associar o desejo nas mulheres a qualquer coisa que não tem só que ver com o lado físico mas também puxa para o lado do intelecto. E é como se a sociedade exigisse que assim seja… Porque, depois, em grupos de mulheres a falarem entre elas, isso acaba: também dizem “comi o gajo… comia aquele gajo…”. Se houver homens no grupo já são capazes de dizer “ele é muito interessante…”, quando às vezes o que querem mesmo dizer é “tem um ganda rabo…”. Acho que muitas mulheres nem assumem isso para si próprias. Há uma educação e um peso cultural que não desaparecem em meia dúzia de anos.
Há muito por mudar?
Já tinha frequentado lugares deste género em Berlim, por volta do ano 2000. E eram coisas perfeitamente inseridas nos comportamentos de um certo estrato social. Não digo que eram comuns… Mas, no centro de Berlim, discotecas com 400 pessoas, quase todas nuas, eram uma rotina aos fins de semana. Cá em Lisboa, nestes sítios, vês dez pessoas, ou 20, nalgumas alturas talvez mais, mas são coisas muito restritas. Não secretas. O restrito tem a ver com o medo.
E com vergonha?
Não me parece. O que acontece lá fica lá. É mais o medo de “o que é aquilo?”, “o que nos vai acontecer? ainda nos viciamos nisto e depois não saímos daqui…”. Sim, acho que se pode dizer que Portugal ainda é um país que tem dificuldade em lidar com o sexo. Haverá muitos mais… Nós até temos a vantagem de sermos católicos e, por isso, temos o “perdão”. Os protestantes estão lixados: cometem os pecados e ficam com eles. Aqui, mesmo com uns pecadozinhos, há sempre a hipótese de nos salvarmos…
Acha que o típico leitor de romances da literatura portuguesa contemporânea vai sentir-se desconfortável e incomodado com esta escrita? A ideia também era chocar, transgredir?
Não, de maneira nenhuma. Tinha algum receio de que o livro provocasse algum desconforto e fosse considerado pornográfico por alguns leitores. Mas já saiu há uns dias e não sinto isso.
Sobretudo mulheres – em Portugal quem compra livros são sobretudo mulheres – têm reagido sem desconforto nenhum e têm gostado muito do livro. A leitura é um ato íntimo e acho que este livro funciona um bocado nesse registo. Claro que se for um padre mais conservador a ler, é capaz de ficar chocado…
Há pouco disse “pornográfico, entre aspas”…
Há páginas que poderão ser consideradas pornográficas mas, como disse alguém, “a pornografia é o erotismo dos outros”. Há muitos anos, quando chegou a Portugal o filme Pato com Laranja, aquilo era considerado pornográfico, hoje é quase um programa para crianças, com o tipo de coisas que se vêem nas novelas à hora de jantar. Alguém pode considerar algumas páginas de O Escuro que Te Ilumina pornográficas, mas não há ali nada de ostensivo, que esteja lá sem haver razões para isso…

“A literatura portuguesa sempre foi muito bem-comportadinha”
Luis Barra
Que riscos literários sente que correu ao escrever assim, de forma tão crua?
Eu já tinha cumprido o meu serviço militar obrigatório na literatura. Nunca ambicionei fazer uma carreira literária, e especialmente depois de dez anos sem publicar não há carreira que resista. Apeteceu-me escrever este livro sem pensar em riscos nenhuns. Não pensei no meu pai nem na minha mãe…
Nem naquela tia avó…
Exato. E como deixei de escrever para que gostassem de mim, não pensei como iria ser recebido. Mas quando o livro saiu confesso que estava muito curioso quanto às reações… Sabia quando estava a escrever, e sei agora, que este é um livro que não existe na literatura portuguesa. Não há nada assim. Há cenas mais ou menos ousadas, claro, mas um livro em que mais de metade das páginas é escrita desta maneira não existe… A questão foi não pensar nos riscos literários que poderia estar a correr. Desliguei.
No próprio livro, menciona-se a tradição do sexo na literatura portuguesa, com a personagem a dizer que os escritores, normalmente, não resistem a acrescentar sempre algum moralismo… Sente-se a seguir as pegadas de quem?
Acho que não estou a seguir as pegadas de ninguém. Tudo o que eu li – e obviamente não li tudo, nem pouco mais ou menos… – mostrou-me que a literatura portuguesa sempre foi muito bem-comportadinha. E continua a ser. Nunca houve grandes escândalos. Houve um ou outro, mas sobretudo por causa do contexto político em que aconteciam.
O Luiz Pacheco…
Sim, por causa da altura em que foi… Se o Pacheco escrevesse hoje, era só mais um, nada de mais. Nos romances há sempre aquele dedinho moralista a deixar marca. Somos todos muito livres, prafrentex e feministas, no caso de algumas escritoras, mas depois lá vem aquela marcazinha moral. Estou a lembrar-me d’A Paixão Segundo Constança H que me chocou vindo da Maria Teresa Horta, por causa de toda a carga moralista que o romance tem. A menos moralista da nossa literatura é a Agustina Bessa-Luís: sem ser ostensivamente amoral, há ali muito de amoralidade… Quando escrevi este meu livro, não pensei sequer numa tradição da literatura portuguesa. E quis mesmo fazer algo contracorrente, contra o “bem-comportadinho.”
Este é, também, um livro sobre o amor?
Sim, para mim é, sobretudo, um livro amoroso, sobre um amor feliz. Feliz porque incondicional. Ele não sabe muito dela, mas isso não o afeta em nada…
Como se esse amor não estivesse sequer muito ligado à vida quotidiana…
Sim, está a um outro nível. Quase transcendente, com esse tal lado religioso. Mesmo o desejo por ela tem essa dimensão transcendente… É muito diferente de chegar a um parque de estacionamento e aviar uma ou duas. Se tivesse de definir o livro muito brevemente, diria: é uma história de amor, não é uma história pornográfica.
E o que se passa por estes dias em Vilarinho dos Loivos?
Tem já só dois habitantes no livro que estou a escrever. São gémeos. Um deles foi-se embora nos anos 40, esteve em Angola, no Brasil… e voltou para morrer. O livro está a meio, mudou de título, não sei ainda qual irá ser o definitivo. Não vai ser o meu próximo livro, provavelmente. Mas voltarei lá.