Sopas tradicionais
São dez da manhã e as panelas já estão ao lume na cozinha do Líder, nascido vai para 30 anos, nas Antas, no Porto. Enquanto coze as batatas para a sopa, Maria Odete, a cozinheira de sempre do restaurante, vai cortando as carnes que hão de entrar nas papas de sarrabulho, a pensar nos clientes do fim de semana. “Gostam de se aquecer com este prato”, revela o proprietário, Manuel Moura. No Líder, não há, de facto, quem dispense as cinco sopas diárias da carta. Além da de legumes, que varia todos os dias, há sempre canja de galinha do campo, caldo verde, sopa de agrião e sopa alentejana.
O segredo, diz Manuel Moura, natural de Amarante e presidente da Confraria das Tripas, está “no uso de bons produtos portugueses”. O caldo verde faz-se com couve- -galega, fresquinha, trazida do Mercado do Bolhão já segada (ou migada, como se diz noutras zonas do País). Chega à mesa a fumegar, “com chouriço do bom, de carne ou salpicão”, conta o dono deste restaurante frequentado pela classe média-alta, que não dispensa o caldo quentinho à refeição. Em A Cozinha do Manel, ainda no Porto, segundas e sábados são dias de canja. “À segunda para desenjoar das asneiras do fim de semana e, ao sábado, porque é o dia em que os filhos trazem os pais para almoçar”, justifica o dono, José Vieira. “Só no último sábado, vendemos 52 canjas e tivemos de arranjar outra galinha caseira porque já não chegava para a noite.” Na Baixa da cidade, o Abadia também possui sempre sopa de legumes: de nabos, hortos ou couve branca. Já em Matosinhos, terra de mar, é a sopa de peixe quem mais ordena, especialmente, a do clássico A Chalandra. Tem robalo, garoupa e peixe-galo frescos, “comprados na lota de manhã”, afirma Susana Figueiredo, uma das responsáveis. Os peixes vão a cozer no caldo quando este está quase pronto e, depois, são retirados no momento em que o puré é triturado. Voltam a entrar, sem espinhas e cortados aos pedaços. A coisa é de tal modo farta que, em A Chalandra, recomendam a partilha.
Quando Teresa Sousa entra na cozinha do Zé Varunca, no Bairro Alto, em Lisboa, sabe que lhe espera a confeção de várias sopas. E todas (à exceção do caldo verde, servido “a pensar nos turistas”) têm os ingredientes alentejanos que, todas as semanas, o marido vai buscar a Estremoz. “Não há nada como aqueles coentros, aquele azeite…”, conta a mulher de José Varunca, que, há anos, trouxe o Alentejo para a capital (tem outro restaurante, em Oeiras). À mesa, há sempre sopa de cação com o peixe e os tais coentros alentejanos a acompanhar o caldo, sopa de tomate e o sopa da panela, feita com a água da cozedura de frango do campo, carne desfiada, chouriço, toucinho, hortelã e, claro, pão alentejano. Antigamente, era servida aos domingos, dias de comida farta em casa. Já o segredo da sopa de tomate, por sua vez, parece estar no “refogado bem feitinho, com bastante cebola, tomate, pimento e orégãos”. Serve-se, com uma fatia de pão, numa terrina, para onde se verte o caldo e um ovo escalfado. Sem pressas, porque esta cozinheira leva 35 anos de serviço e gosta “de coisas feitas com tempo”.
Calma é o que Hélia Costa também não dispensa quando entra às 6 e 20 da manhã na cozinha do Toucinho, em Almeirim, onde terá nascido a sopa de pedra. A proprietária e cozinheira conta que demora três horas, mas que são precisas mais duas em descanso, para “engrossar o caldo” que levou “feijão catarino, cebola, alho, batata, louro, pimenta, colorau, chouriço de carne, morcela, farinheira, chispe de porco e toucinho curtido de sal”. A pedra, essa, vai no prato, como manda a tradição. Quem queira pode só comer a sopa, que Hélia aprendeu a fazer com a avó Mariana. E pedir um caldo “da mesma cor escura das pedras” que, em 1962, cobriam as ruas da terra. É igualmente histórico o de Quintandona, em Lagares, Penafiel. Feito em panelas de ferro, “no lume de madeira, que lhe dá um sabor inconfundível”, conta Paulo Sousa, um dos sócios do Wine Bar Casa da Viúva, onde é servido, com nabiça, feijão e costela de porco, a boiarem, grosseiramente, no prato. Como antigamente.
Sopas modernas
À primeira vista, pode não parecer, mas Ljubomir Stanisic garante que se trata (mesmo) de uma sopa. Que pode ser provada no seu restaurante Bistro Maneiras, em Lisboa. Uma escolha que, segundo o chefe, “sabe a inverno e aquece a alma”. Para a criar, Stanisic inspirou-se na sopa confecionada por Paul Bocuse, “o melhor chefe do mundo”, a pedido do antigo presidente francês Valéry Giscard D’Estaing, para um jantar no Palácio do Eliseu, em Paris. Desta sopa, Stanisic utilizou a ideia da massa folhada que cobre a tigela, sendo o resto da sua autoria. E o “resto” é o seu conteúdo propriamente dito: cenouras, aipo, gengibre, pato confitado, foie gras e trompetas da morte.
Qual a sopa que mais bem representa a gastronomia portuguesa? Um exercício a que o chefe Pedro Almeida e a sua equipa responderam com um seguro caldo-verde. Mas que, de alguma maneira, teria de original, para se enquadrar no espírito da cozinha japonesa com influências do mundo, seguido pelo restaurante Midori, em Sintra. O misoshiro com couve crocante, chouriço e pão sabe a caldo-verde, apesar de, visualmente, estar longe da imagem que temos desta sopa. É confecionado com dashi (um caldo rico japonês, preparado a partir de atum-bonito fumado e seco), alga kombu e couve frita, para ficar crocante. “No fundo, tem todos os ingredientes de um caldo-verde clássico: batata, couve e azeite”, explica Pedro Almeida, que há quatro anos chefia a cozinha do restaurante no primeiro andar do Penha Longa Resort. E nem a tradicional rodela de chouriço ficou de fora: “Está diluída em pó, óleo e maionese”.
Esqueçam-se as panelas de barro que os restaurantes tradicionais usam para servir a sopa da pedra e viremos as atenções para a reinterpretação da dita pelo chefe Miguel Rocha Vieira. Para lá de ser uma sopa bonita, pode ser saboreada em frente ao mar, no restaurante Fortaleza do Guincho, em Cascais. Na verdade, será preciso ter muita imaginação para ver nesta criação uma sopa da pedra – a sua prova, porém, confere-lhe o sabor autêntico, garantimos. Isto porque tem o mesmo que a versão tradicional, ou seja, morcela, chouriço, couve, tomate, cebola e um pouco de alho. Depois de cozinhados, os ingredientes são passados pelo coador chinês, que separa o líquido dos ingredientes sólidos. “O sabor fica neste caldo, e é ele que vai à mesa”, diz Miguel Rocha Vieira, distinguido com uma Estrela Michelin. É preciso olhar para a imagem para se perceber onde se escondem os sabores desta elegante combinação. “As mãos que se veem desenhadas no centro do prato são feitas de puré de feijão, as pedras amarelas são de couve e as cinzentas, de entrecosto assado. O crumble sabe a morcela e courato, descreve o chefe.
Mais fiel ao olhar é a sopa de marisco criada por Bruno Rocha, do restaurante Flores do Bairro, em Lisboa. Há muitos anos, os dias em que a sua mãe se atrasava a sair do trabalho serviam de pretexto para irem comer uma sopa de marisco a um restaurante à saída dos barcos, em Cacilhas. “Ainda hoje me recordo desta refeição quentinha, servida numa taça em inox e com cubos de pão frito. Enchia-nos a alma e era reconfortante”, recorda. E foi este sabor a mar “repescado” à infância que inspirou o chefe a fazer este creme de marisco com baunilha azeda.
Desenganem-se os comensais que vão à espera de uma “simples” sopa de marisco. Bruno Rocha usa a técnica francesa para preparar o bisque, o caldo de marisco. E a cozinha asiática também se faz notar neste prato, principalmente no travo a gengibre e a citronella. Para a equação ficar completa, falta acrescentar Portugal, que entra de uma forma natural, com o carabineiro, o lavagante e a santola. “Até porque temos os melhores mariscos do mundo”, afirma. Há vários segredos que vão sendo desvendados ao longo da conversa com o chefe lisboeta, que viveu durante muitos anos no Algarve: “Não é habitual uma sopa levar álcool, mas gosto de flamejar o marisco com Pernod. Dá-lhe frescura e um travo a anis”. Resulta um caldo cremoso, denso, acompanhado por uma fatia de pão alentejano, frita em azeite e alho, com um toque final com natas azedas e baunilha. E, para quem não aprecia ou é alérgico a marisco, pode pedir o creme de couve-flor com nano profiteroles (€4,50), por exemplo.
Para se comer o creme de cenoura com petazetas de laranja (€3,50) é preciso (ser) “cauteloso”. E viajar até ao Porto, já agora. Assim se intitula a categoria da ementa onde o chefe Luís Américo “arrumou” na ementa esta sopa servida no restaurante Cruel (há, ainda, as categorias Cruel e Medroso), no Porto. “No fundo, é para quem quer ser ousado, mas não muito”, explica Luís Américo. E, ainda por cima, acrescenta, “é extremamente simples de a fazer”. Prepara-se um creme de cenoura e acrescenta-se raspa de laranja. “É uma combinação que já faço há muitos anos. Gosto do contraste do doce da cenoura cozinhada com o toque cítrico da laranja”, descreve. “É uma sopa consensual em termos de sabor e, ao mesmo tempo, é divertida e surpreendente porque chega à mesa a crepitar. Nas primeiras colheradas, por causa das petazetas, sente-se uma explosão.” E é por estas e por outras que, quando se fala em cozinha contemporânea, se acaba muitas vezes a falar em “experiências”.
Sopas Asiáticas
Podemos dizer, sem pudor, que a semana escolhida para andar por aí a experimentar sopas japonesas e vietnamitas não podia ter sido mais acertada. Com temperaturas que se soletravam com apenas um dígito, os caldos asiáticos souberem mesmo bem – e com isto não queremos dizer que devem ficar de fora em dias mais quentes. Ao contrário das páginas anteriores, há que fazer um ou dois pontos prévios para quem está menos familiarizado com estes caldos fumegantes. Explicar que a base demora a preparar e que o seu conduto faz as vezes de uma refeição. Quem come um ramen ou um pho não precisa de mais nada – ficará aconchegado e satisfeito por várias horas. Foi na Rua do Benformoso, no Intendente, que há cerca de três anos apareceu a primeira casa de pho (Pho Pu) em Lisboa. Lá, come-se numa grande tigela, que chega à mesa com o caldo a ferver, fatias de carne, almôndegas e tripa, além da massa de arroz. Há que terminar a sopa a gosto, com rebentos de soja, lima, hortelã e manjericão, malagueta ou molho hoisin. Tudo isto por seis euros.
Além deste poiso genuíno, este tipo de comida de rua vietnamita pode ser encontrado, curiosamente, em dois centros comerciais lisboetas e na ementa do recente O Asiático, do chefe Kiko Martins. O Pho House, por sua vez, estreou-se há sete meses no Saldanha Residence e já está para se expandir para o Rio Sul, no Seixal. Yue Wang, a dona, explica que a ideia surgiu depois de algumas viagens frequentes a França, onde o prato é muito conhecido por causa da comunidade vietnamita. Pediram a um chefe amigo que os ajudasse com as receitas e adaptaram ligeiramente os sabores ao paladar português. “Preparamos o caldo durante 24 horas. De manhã, lavamos os ossos e deixamo-los a cozinhar até a água ficar castanha, depois juntamos especiarias, muita cebola e gengibre. No dia seguinte, voltamos a temperar”, explica. Na ementa, há doses pequenas ou grandes e os preços variam entre €5,9 e €7,5, consoante o tamanho e o conduto (carne de vaca, frango, marisco ou vegetariano). Junto com a taça, vem um prato com rebentos de soja, manjericão, hortelã, malagueta, limão e dois molhos, um de soja e outro de vinagre. A massa é de arroz, importada de França, e não deve espapaçar.
O Ori abriu há três anos no food court do Colombo e, desde então, formam-se filas para os pratos orientais, especialmente à hora do almoço. Também há uma versão de pho (menu com bebida €8,30), outra de laksa, sopa da Indonésia e da Malásia, com caldo de leite de coco e caril vermelho (€9,30) e dois ramen servidos com massa de trigo (o Sapporo, com entremeada, e o Tokyo, com novilho ou frango e camarões). Nuno Duarte e Jorge Ferreira abriram este pequeno restaurante depois de algumas viagens e com a consultoria dos chefes Fausto Airoldi e Paulo Morais, muito ligados à gastronomia oriental. “A partir do momento em que se prova, gosta-se. Deve saborear-se a mistura de sabores para um resultado final agradável”, explicam os sócios, que deixaram a banca para se dedicarem a isto. Os caldos são preparados com antecedência, o resto acrescenta-se no momento do pedido.
Desde que um bar de ramen no Japão, com apenas nove lugares, recebeu uma Estrela Michelin que este prato de conforto passou a ser mais conhecido fora do seu País e longe do universo anime (na manga Naruto, por exemplo, o ramen é o prato que mais se come). Em Portugal, além do Ori, também é possível experimentá-lo nos lisboetas Midori, Duplex, Wasabi Sushi Bar, Sushic Chiado, Miss Japa, Nood, Bastardo ou Novo Bonsai (só quinzenalmente e por encomenda). Já no Porto, pode provar-se no Góshò, Ramen Break ou no RO.
Anna Lins, a chefe do Miss Japa, restaurante japonês no Príncipe Real que tem dois ramen na lista, revela que, na sua base, há sempre um caldo aromático, com gengibre, alho, nabo, cebolo ou alho francês, a que se juntam as carnes que fervem durante horas para que o seu sabor seja apropriado pela água. A massa, já está cozida, é aquecida no caldo – por cá, serve-se em doses de 120 ou 150 gramas, mas no Japão pode ter até 400 gramas. Trata-se de um prato forte, que deve ser sorvido, com barulho, para que se absorvam os sabores, enquanto ele arrefece. “Com os pauzinhos, enrola-se a massa e a colher ajuda os legumes, a carne e o ovo. Mas, no final, deve levar-se a taça à boca, para acabar com o caldo”, ensina Anna Lins.
No Kokoro Ramen Bar, ninguém faz barulho a sorver os três ramens (shöyu, tonkotsu e vegetariano) que constituem a lista minimalista deste pequeno restaurante aberto há cerca de um ano, junto ao Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Não são do melhor que é possível provar na capital, mas o preço baixo (entre €7 e €8,5) e a novidade fazem com que esteja sempre cheio. Pela mesma altura, o Koppu, umas ruas abaixo do Príncipe Real, também abriu portas a uma ementa em que o ramen predomina, com cinco versões (porco, galinha, galinha com chili, miso e vegetariano, entre €10,50 e €12). A provar, ou repetir, especialmente neste tempo frio.