Estreou há pouco mais de um mês na Netflix e já foi vista por quase 150 milhões de famílias em 94 países. Squid Game,ou Jogo da Lula, em português, acompanha um grupo de 456 pessoas desesperadas, com dívidas que não conseguem pagar, e que aceitam competir umas contra as outras para ganhar um avultado prémio em dinheiro.
O único se não é que apenas o vencedor final permanece vivo, os restantes vão sendo mortos de forma violenta, à medida que perdem as seis provas que constituem o jogo, jogos simples de criança como o macaquinho do chinês ou os berlindes.
Mas o que terá esta série que nos deixa agarrados ao ecrã, apesar de conscientes da violência a que estamos a assistir? Para a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos tratam-se de mecanismos de suspense que a narrativa consegue criar no espectador, seja ele criança, jovem ou adulto.
A médica acredita que o mais perigoso em Squid Game é que “o espectador é levado a estar muito mais tempo a pensar e a desejar mecanismos de sobrevivência do que a ter um pensamento humano que reflete os valores entre as pessoas e as situações nobres da existência, como a vida, a morte, a humilhação pelo outro, a injustiça ou a revolta”.
Além disso, o nosso cérebro funciona de acordo com os chamados “sistemas de gratificação e recompensa”. Ou seja, “para cada ressentimento e desilusão que sofremos, precisamos de ter em maior quantidade recompensa, gratificação e sentir o amor dos outros”, explica a médica.
Apostar nestes mecanismos é algo em que Squid Game é pródigo. “Tanto mostra imagens de uma violência medonha, que não gostamos de ver, que nos causam horror e repulsa, mas que nos podem excitar emocionalmente, como oferece momentos de música clássica extremamente apaziguante ou vai buscar imagens referenciais de coisas que conhecemos, como as escadas do Escher”
O resultado é uma dissonância permanente, uma “constante ambivalência entre o que eu preciso para a minha sobrevivência social e o que eu preciso para que a minha humanidade seja competente”, resume Ana Vasconcelos.
A perda de humanidade é precisamente o que certas personagens da série, como o exército com as caras cobertas com máscaras, são especialmente eficazes em provocar. Ana Vasconcelos explica que “nós precisamos muito da empatia para a nossa humanidade e para os circuitos da gratificação e da relação com o outro, que depois originam a solidariedade e a compaixão”.
A promoção de um estado constante de alerta, da perda de humanidade e de uma narrativa que apela ao modo de sobrevivência do cérebro levam a pedospiquiatra a considerar que Squid Game não é pedagógico, nem se enquadra no tipo de série capaz de gerar uma discussão que dê origem a aprendizagem. Nem mesmo quando visto por jovens acompanhados de adultos.
“Esta série tem mecanismos tão primários na nossa mente que, mesmo para os adultos, pode por-nos em armadilhas, sobretudo em tempos de pandemia quando estamos todos mais fragilizados”.
“Ao ver o primeiro episódio saí mal disposta”, desabafa a médica, explicando que as memórias ou experiências traumáticas que, de alguma forma, fomos tendo ao longo da vida, podem ser reativadas pela narrativa de Squid Game, “de uma forma que, em vez de nos dar um pensamento humano pro-ativo, pode-nos dar pensamentos de desilusão, desespero e irritação”.
Retirar a série do catálogo da Netflix parece, ainda assim, uma medida demasiado extrema, na opinião da médica. No entanto, Ana Vasconcelos considera que numa situação de pandemia, “em que se registam cada vez mais crianças a falar da vontade de morrer”, a veiculação de conteúdos deste género “torna-se ainda mais problemática”.
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