José António Pereira da Silva, reumatologista que se dedica há anos a tratar a fibromialgia, lançou no País um instituto virtual (MyFibromyalgia.org) com o qual pretende combater a doença de uma forma diferente: ajudar os doentes a serem mais felizes, o que, acredita o reumatologista, tem demonstrado ser uma solução mais eficaz do que a medicação.
Diz que há uma forte relação entre a fibromialgia e a tensão psicológica do dia a dia e que a felicidade tem poderes curativos nesta doença. Como se processa tudo isto?
Esta relação foi sempre claramente reconhecida, por todos os meus doentes, como sendo um aspeto dominante da sua experiência com a doença. Muitos, contudo, só se apercebem disso depois de lhes ser pedida atenção para esse facto. Pergunto regularmente aos meus doentes, depois de lhes aconselhar uma reflexão sobre a matéria, em quanto estimam que os seus sintomas melhorariam se ocorresse o “milagre” de andarem sempre tranquilos e felizes: a resposta típica oscila entre 50 e 80 por cento. Nenhum medicamento poderia oferecer um alívio desta ordem. A relação entre as duas coisas é fácil de explicar: nenhuma pessoa – na verdade, nenhum animal – consegue estar tenso, nervoso ou preocupado e ter os músculos a descansar, relaxados. Sempre que a cabeça se preocupa, os músculos contraem-se, e esta é uma reação natural. Os músculos que se contraem continuamente cansam-se, e os músculos cansados doem! Os músculos expostos a maior tensão variam de um momento para o outro, assim variando o local da dor. A dor, o cansaço e a incapacidade física que daí derivam fazem aumentar a tensão nervosa e assim se instala o círculo vicioso que tortura estes doentes e que é fundamental interromper.
Acresce que, ao nível do cérebro, o stresse faz aumentar a produção e libertação de moléculas neurotransmissoras capazes de amplificar a sensibilidade à dor e diminuir a atividade dos mecanismos que regulam e diminuem a experiência dolorosa. Estes desequilíbrios neuroquímicos podem ser positivamente alterados por atividades voluntárias que favorecem a tranquilidade, a harmonia e a felicidade. O mesmo sucede com os medicamentos que hoje usamos.
Há estudos científicos que revelam a ligação entre a doença e a felicidade?
A felicidade, como conceito complexo e individual que é, mostra-se difícil de medir. Há, contudo, numerosos estudos que relacionam a fibromialgia com uma maior prevalência de manifestações, traços ou processos psicológicos contrários ao bem-estar subjetivo, ou seja, à felicidade.
A fibromialgia está fortemente associada a maior prevalência de depressão e a níveis mais elevados de ansiedade. Os doentes com fibromialgia são mais perturbados pelas pequenas picardias e imprevistos do dia a dia, e têm forte tendência para atribuir uma carga mais negativa aos acontecimentos menos bons e para minimizar a valência positiva das coisas boas. Esta verdade está demonstrada não apenas com acontecimentos de vida, mas também com odores e ruídos, por exemplo.
A rede social de apoio e relacionamento dos doentes com fibromialgia é, em média, mais pobre e o seu passado é, com frequência, sobrecarregado com acontecimentos e memórias tristes ou episódios traumáticos, como abuso físico e emocional.
De uma maneira geral, pode dizer-se que a fibromialgia está fortemente associada a indícios contrários à fruição de felicidade.
Por outro lado, é verdade que a quase totalidade dos medicamentos que mostraram alguma utilidade no tratamento da doença influenciam positivamente o humor, com destaque para os antidepressivos. O mesmo se pode dizer das psicoterapias e do exercício físico, formalmente recomendados no tratamento da fibromialgia.
Os doentes não parecem ter dúvidas, uma vez que se lhes peça que reflitam sobre isso: se andarem mais tristes, preocupados ou nervosos, tendem a sentir-se pior, sucedendo o contrário quando andam mais tranquilos, felizes ou até, simplesmente, distraídos.
As pessoas que sofrem desta doença costumam ter mais depressões?
Não devem confundir-se as duas condições, mas é verdade que as pessoas com fibromialgia têm, mais vezes do que os outros, depressão atual ou passada. Não é raro que os doentes com fibromialgia descrevam uma longa história de depressões ou tratamento “para os nervos”.
Qual o perfil da mulher com esta doença?
As mulheres (e os homens) com fibromialgia partilham, em regra, certos traços de perfil psicológico. Geralmente, são pessoas:
Preocupadas: com tudo e com todos, mais com os outros do que consigo; com coisas de hoje, ontem e amanhã; com uma cabeça sempre “cheia de problemas”, que nunca para nem lhes dá descanso.
Perfecionistas: exigentes com os outros e, sobretudo, consigo mesmas; geralmente insatisfeitas e perturbadas por tudo o que está mal à sua volta, bem mais dadas a valorizar o que está mal – e é muito, aos seus olhos! – do que o que está bem.
Incapazes de relaxar: têm sempre “mais que fazer” do que simplesmente saborear; sentem dificuldade em estar quietas sem fazer nada, sendo assaltadas por sentimentos de culpa e inadequação se o fizerem. Os sonhos envolvem, tipicamente, preocupações e responsabilidades.
E qual o perfil do homem que sofre desta doença?
O mesmo que o das mulheres, só que manifesta-se mais em contextos profissionais e menos nos domésticos, por razões sociais óbvias. O diagnóstico é mais difícil e retardado em homens, porque os profissionais de saúde estão menos sensibilizados para estes casos e também porque certos indícios, como os típicos pontos dolorosos da fibromialgia, são menos frequentes em homens.
Quantos portugueses sofrem desta doença?
Com base nos estudos existentes, estima-se que existam cerca de 250 mil portugueses afetados, dos quais apenas 50 mil serão homens. Acredito, contudo, que estes valores estejam subestimados por não incluírem muitos casos menos óbvios da doença. Penso também que o stresse crescente da vida moderna, por razões laborais, económicas, sociais e até climáticas, contribuirá para o aumento do número de pessoas afetadas.
Porque há mais mulheres afetadas?
A explicação ainda não pode ser cabal. Entre os fatores reconhecidos contam-se a maior tendência do sexo feminino para o stresse e a depressão. É também verdade que as pessoas do sexo feminino sentem mais dor diante da mesma intensidade de estímulo doloroso, numa variedade de circunstâncias e por vários motivos de natureza biológica, incluindo a dor induzida por pressão ou por corrente elétrica.
Penso, contudo, que um fator muito importante reside na maior carga de stresse que a atual organização social impõe às mulheres comparativamente com os homens, dada a sua responsabilidade predominante na esfera familiar, para com os mais novos e os mais velhos, além do espaço profissional que partilham por igual, ganhando menos.
Criou recentemente um instituto virtual dedicado a estes doentes. Como surgiu a ideia?
Sou médico reumatologista e interesso-me, há muito tempo, pela fibromialgia e pelos doentes que sofrem dela. Desenvolvi, ao longo dos anos, esta forma de intervenção terapêutica personalizada para esta condição, baseada na construção de felicidade. Muitos doentes obtiveram, com esta intervenção, muito mais resultados do que era esperado, em média, com a medicação. Alguns consideram-se praticamente curados. Pude confirmar, em reuniões internacionais em que apresentei estas perspetivas, que os doentes de muitos outros países se reconhecem igualmente bem nesta proposta.
Ora, a construção de felicidade não é um processo fácil nem rápido. Exige, quase sempre, empenho e trabalho continuados, que podem beneficiar com o apoio de instrumentos próprios e de profissionais dedicados e competentes.
A identificação dessa necessidade, o número de doentes e a ausência quase completa deste tipo de respostas pelos serviços de saúde tornaram a criação do Instituto Virtual de Fibromialgia um imperativo ético para oferecer aos sofredores desta doença meios e métodos capazes de os ajudar a ter uma vida melhor.
Na prática, o que fazem através do site?
Em MyFibromyalgia.org, começamos por partilhar com os doentes o nosso modelo de entendimento da doença, bem como os fundamentos e princípios essenciais da orientação terapêutica que lhes propomos. Acreditamos que o stresse em que estas pessoas vivem tem um papel decisivo na origem e na manutenção da doença. Quase todos os doentes reconhecem isso, com facilidade. Explicamos de que forma o stresse pode conduzir às dores e ao cansaço que dominam as suas vidas e propomos reflexões que ajudem a compreender o problema, como ponto de partida para construir as soluções.
Os participantes são convidados a responder a um inquérito de perfil psicológico, que permite personalizar as recomendações que fazemos, graças a um algoritmo desenvolvido por mim e pela nossa equipa de psicólogos. As recomendações passam por exercícios de autocompreensão e progressiva modificação pessoal, apoiados numa grande variedade de instrumentos cientificamente fundamentados. Os participantes podem partilhar experiências e estratégias no fórum e socorrer-se, a qualquer momento, do apoio de psiquiatras e psicólogos, especialmente treinados nesta matéria, mediante perguntas simples ou consultas online.
Esperamos melhorar continuamente os serviços que prestamos, pelo contributo dos utilizadores, pelo recurso a novos instrumentos e tecnologias, e também pela investigação própria que pretendemos desenvolver. MyFibromyalgia almeja constituir-se como uma grande comunidade de entreajuda e de investigação em fibromialgia.
Que desafios são impostos aos doentes? Pode exemplificar?
Os doentes são desafiados, antes de mais, a conhecerem-se melhor a si mesmos e a perceberem as relações entre os seus traços de personalidade e as emoções com os sintomas da fibromialgia. São também desafiados a refletirem sobre as suas relações com o mundo e com os outros, e a desenhar estratégias que permitam mudar o que tem de ser mudado e a aceitar o que não pode ser mudado, para alcançarem mais harmonia e serenidade.
Um dos desafios mais difíceis reside, desde logo, em aceitar as conotações psicológicas dos sintomas e em reconhecer que isso não significa que a pessoa tem uma doença psiquiátrica, que os sintomas são falsos ou inventados, nem tampouco implica que a pessoa é culpada pela sua doença. Aceitar que temos, como todos, fragilidades é, muitas vezes, difícil, mas constitui um passo essencial para encontrar soluções: ninguém resolve problemas que não entende!
Se chegarmos aqui, teremos conseguido o essencial – o próprio doente escolherá os desafios que entende ser útil colocar a si mesmo, com a nossa ajuda, para desenvolver a sua felicidade, mudando o que houver que mudar e aceitando o que não se pode mudar – no mundo e, sobretudo, em si mesmo.
Como se consegue aumentar a felicidade?
Há uma disciplina científica dedicada só a isso: a Psicologia Positiva, com um forte registo de sucesso em muitos campos. Serve-se da demonstração científica de que a felicidade (ou “bem-estar subjetivo”, na linguagem científica dominante) assenta, no essencial, em alguns pilares comuns que importa desenvolver em cada pessoa. Merecem destaque, neste contexto, os conceitos de gratidão (pelas pequenas e grandes coisas da vida), o sentido de vida, o otimismo e o conceito de apreciação (saborear os pequenos prazeres físicos, mas também a beleza, o silêncio, a harmonia…), entre muitos outros. As necessidades variam de pessoa para pessoa, bem como as forças de carácter de que cada um pode servir-se para promover as alterações que escolhe para si. A Psicologia Positiva propõe uma grande variedade de exercícios e práticas concretas para promover as transformações necessárias.
Outras correntes de pensamento na área da psicologia perseguem objetivos idênticos, por métodos que são, em boa medida, sobreponíveis, muito embora se coloquem em campos teóricos aparentemente distintos. É seguramente o caso das chamadas psicoterapias de terceira geração, atualmente muito em voga, como o mindfulness, as intervenções baseadas na Compaixão e a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT).
Todas têm provas dadas e são recomendadas para o tratamento da fibromialgia; todas têm como objetivo a tranquilidade, a harmonia emocional, a construção de uma vida plena, com qualidade e com significado para o próprio – em suma, a construção da felicidade.
A ideia é, então, ensinar os doentes a serem mais felizes?
É, efetivamente, apoiar os doentes no processo de construção da sua felicidade, como instrumento decisivo para o controlo da fibromialgia. A felicidade é constituída por diferentes coisas para diferentes pessoas, e até para a mesma pessoa em diferentes fases da vida. Não há, pois, uma receita única para a felicidade e não é possível ensinar-se, simplesmente, alguém a ser feliz!
Mas é possível convidar a pessoa a pensar nisso, a valorizar esse objetivo, a construir a sua própria definição do que é a felicidade para si, a identificar os principais bloqueios que enfrenta nesse caminho e a desenvolver os recursos que tem para os ultrapassar.
Os resultados são, na maior parte das vezes, observados lentamente, porque ninguém muda a sua matriz nuclear do dia para a noite. Por vezes, são surpreendentemente rápidos e notáveis, como se ocorresse um clique! Mas são sempre positivos, para o próprio e para quem o rodeia, e sobretudo desprovidos de efeitos adversos, ao contrário das medicações.
O que causa a fibromialgia?
As causas não estão ainda esclarecidas. Sabemos que a fibromialgia está ligada a um conjunto de genes predisponentes, todos eles relacionados com neurotransmissores do sistema nervoso central, capazes de modular tanto a dor como o humor e a personalidade.
Está estabelecido, hoje, que estes doentes apresentam perturbações no funcionamento dos núcleos cerebrais relacionados com a dor, o que conduz a um estado de hipersensibilidade central, em que a perceção da dor é amplificada e os mecanismos internos que a deveriam atenuar são diminuídos. Não temos, contudo, a certeza de que estas alterações sejam o distúrbio primário ou apenas manifestação de uma causa mais profunda. Pela minha parte, inclino-me para a segunda interpretação.
Está atualmente em fase de publicação um artigo científico que eu redigi com outros elementos, em que propomos um novo modelo, bem fundamentado cientificamente, no qual a personalidade teria o papel primordial. Uma personalidade que carrega de tonalidade negativa a perceção da realidade, municia o cérebro com sinais de alarme e indícios de ameaça que são tratados, como todos os outros, incluindo a dor, numa rede neuronal dedicada, a que se chama salience network. Esta rede funciona como uma central de alarme que tem como função principal garantir a sobrevivência: sobrecarregada, amplifica todos os sinais de alarme – da ansiedade aos ruídos e à dor! Esta nossa proposta foi subscrita por um grande número de investigadores dedicados à fibromialgia e constitui um fortíssimo suporte para as nossas propostas de intervenção.
Há quem diga que esta não é uma doença, mas um problema psicológico. O que pensa disso?
Seria, desde logo, difícil estabelecer uma distinção sólida entre “problemas psicológicos” e “doenças”, já que muitos problemas psicológicos causam, só por si, sofrimento suficiente para se constituírem como doenças. Não existe, na verdade, nenhuma doença meramente psicológica (porque não há psicologia num vazio biológico), nem qualquer doença puramente orgânica, já que é difícil que se conceba uma doença sem sofrimento – e este é, por natureza, psicológico.
É inquestionável que a fibromialgia tem uma forte conotação com dimensões psicológicas. Admito mesmo que a fibromialgia seja iniciada no mundo psicológico e agravada por ele, mas importa desfazer qualquer dúvida que ainda haja sobre a natureza orgânica, inquestionavelmente real, das queixas que os doentes descrevem: as dores da fibromialgia são reais e incapacitantes. Não são uma invenção do doente nem uma desculpa para descartar responsabilidades.
O facto de a dor vir acompanhada de dimensões psicológicas e de não sabermos explicar cabalmente a sua origem não dá a ninguém o direito de duvidar da sua autenticidade. É absurdo atribuir aos doentes o ónus da ignorância que ainda resiste, nestas matérias, ao avanço da Ciência!