O Nilo é considerado o maior rio do mundo em comprimento, sendo que o seu curso, com aproximadamente 6690km, se inicia no Lago Vitória, no Burundi, e termina num delta no Mar Mediterrâneo. Com uma bacia hidrográfica de cerca de 3.300.000 km2 e um caudal de 3 milhões de litros de água por segundo, o Nilo atravessa quase metade do continente africano, drenando o Burundi, o Ruanda, o Uganda, o Sudão e o Egito. Se em termos históricos o Egito sempre teve supremacia sobre as águas do Nilo, nos dias de hoje essa máxima é ainda mais verdadeira. Já desde os conflitos na década de 20, e depois de 50, com o Sudão e com os restantes países que ocupam a bacia do Nilo (nomeadamente a Etiópia, que tem o Nilo Branco), o Egito tem tido vantagem na posse desta água tão vital à vida. A presença colonial inglesa nesta área do mundo deixou-lhes um legado importantíssimo, um acordo que lhes garante “a utilização plena das águas do Nilo”. Os restantes países parecem, de há uma década para cá, não estar de acordo. Numa área com clima desértico, o Nilo é a principal (senão a única) fonte de vida. Se para o Egito e Sudão a posse desta água faz a diferença entre a vida e a morte, as bases ao conflito estão lançadas. O aumento populacional que estes e os outros países da bacia registam faz com que os governos se digladiem pela posse deste bem.
O regime do Nilo varia conforme o clima das regiões que vai atravessando. O Nilo com caráter equatorial é alimentado por chuvas permanentes numa das regiões com mais precipitação do planeta. Ao entrar no Sudão o seu caudal aumenta devido à confluência com o Nilo Azul e com o Bahr-el-Gasal. Esta área tropical concede ao rio características particulares, alternando períodos de estiagem com períodos de cheias frequentes. Mas, quando o Nilo entra no deserto do Sahara, deixa de receber mais afluentes significativos e o seu caudal vai diminuindo progressivamente até ao Mar Mediterrâneo.
A foz do Nilo é, talvez, o melhor exemplo dos deltas mundiais. O delta do Nilo localiza-se numa extensa planície aluvial que representa uma grande parte das terras férteis do Egito. Se não fosse o Nilo, a vida aqui nunca teria existido e a civilização egípcia nunca teria prosperado e atingido a opulência que os seus monumentos ainda hoje demonstram. O Egito é, ainda hoje, considerado como um oásis criado pelo Nilo. As maiores cidades, Cairo e Alexandria, estão nas margens do Nilo e no seu delta. No entanto, um dos lugares que hoje é mais importante para os egípcios é Assuão.
Última cidade meridional do Egito, Assuão sempre teve uma situação geográfica privilegiada e desempenha, hoje, um papel importantíssimo a nível turístico, tal como no passado o desempenhou em todos os períodos da História do Antigo Egito. Os mercadores e rotas de escravos de África entravam pelo Assuão e o próprio nome da cidade deriva da palavra “mercado”. A sua riqueza, no entanto, ficará sempre associada aos granitos vermelhos, quartzo e dioritos que embelezaram um pouco os templos e túmulos do todo o Egito, para além das minas de ouro que permitiram a elaboração de vários artefactos que embelezavam os faraós e os nobres. Hoje, pouco resta do esplendor do passado, pois a moderna cidade apresenta um lençol de água permanente depois da construção da polémica barragem do Assuão. A primeira barragem data de 1902 e a grande de 1971, que criou uma das maiores albufeiras artificiais do mundo e permite controlar a água, armazenando-a para tempos de seca e fornecendo energia hidroelétrica a todo o país. No entanto, também criou novos problemas. O volume de sedimentos que deveria chegar ao delta está em franca diminuição, apesar da transferência forçada em camiões, desde a albufeira até ao delta. Segundo a revista Science, alguns cientistas preveem que esta barragem, tão importante para o país, possa ser responsável por um dos maiores desastres ambientais já registados no próprio país. Se as suas previsões estiverem corretas, milhões de habitantes terão de abandonar o delta. A subsidência do delta, provocado por fenómenos tectónicos, é uma ameaça Se até aqui os sedimentos do rio compensavam este processo natural, hoje isso já não acontece. A compactação do solo já não é a mesma e o delta está a “afundar-se” lentamente. O governo do Egito esta ciente da importância do delta na sua economia. Investiu em vários estudos e tem um megaprojeto para criar um braço artificial para a área dos desertos ocidentais através de uma bomba gigante que desviará 10% do caudal do rio. É urgente fixar a população noutros locais. É urgente aumentar a área habitável deste país, que hoje é de apenas 3,5%. Conseguirá o governo egípcio conjugar o desenvolvimento económico com a sustentabilidade ambiental? Esperemos que sim.
Nas imediações de Assuão existem também outros locais de interesse (mesmo debaixo de temperaturas elevadíssimas!). A nossa primeira escolha recaiu sobre a travessia de ferry local até a ilha Elephantina. Decidimos explorar esta ilha que alberga hoje uma das maiores comunidades núbias do Egito. Este povo, de origem africana, de pele escura mas feições ocidentais, distingue-se claramente dos restantes egípcios. A ilha tem duas aldeias onde a vida se desenrola ao ritmo solar. A população é, na sua maioria, simpática, embora vejam com desconfiança as máquinas fotográficas. Apesar de Assuão ser muito turístico, a verdade é que fora dos percursos efetuados pelas agências não se vê praticamente ninguém. Aí, visitámos o Museu do Assuão e os Templos de Khnum e Salet, nas ruínas de Yebu. Pudemos, ainda, desfrutar da vista sobre os jardins botânicos numa outra ilha em frente. De destacar, neste complexo, o interessantíssimo Nilometro, que se destinava a medir as cheias do Nilo. Hoje, também em crise devido à barragem!
Ainda neste dia, regressámos à marginal e apanhámos outro ferry para o Túmulo dos Nobres. Apesar destes lugares serem frequentemente negligenciados pelos circuitos turísticos são extremamente interessantes para conhecer o Império do Antigo Egito. Aqui pudemos ver cinco túmulos que estão abertos ao público, com inscrições e representações muito curiosas de cenas da vida quotidiana. Pudemos, também, admirar os acessos criados nas rochas para içar as múmias do Nilo.
No segundo dia em Assuão, visitámos Abu Simbel, numa tour organizada pelo nosso hotel, com início as 3.15h da manha! Abu Simbel fica a 280 km de Assuão e já a 40 km da fronteira com o Sudão. Seria uma povoação desconhecida e esquecida, não fosse o facto de, nas suas imediações, se encontrarem os dois templos de Ramsés II e de Hathor, também chamados os templos de Abu Simbel. Aquando da construção da barragem do Assuão, os templos ficariam submersos pelas aguas do lago Nasser, que hoje é o maior lago artificial do Mundo, e a UNESCO encarregou-se da tarefa de salvar este património mundial, tendo os templos sido serrados à mão, em 1050 blocos, para serem reconstruídos numa colina artificial, a 210 m de distancia e 61m mais acima da sua localização original.
O templo de Ramsés II apresenta uma fachada impressionante, mesmo passados 3250 anos desde a sua edificação. Quatro estátuas colossais, com mais de 20m de altura, representando Ramsés II sentado, olhando na direção do Sol nascente, guardavam a fronteira do Antigo Egito e a entrada para o templo, onde duas séries de 4 colunas e estátuas de Ramsés nos conduzem ao santuário. As paredes estão decoradas com relevos dos deuses egípcios, a quem Ramsés faz oferendas, assim como representações das campanhas militares do faraó na Síria e Núbia. Estes relevos estão em bom estado de conservação (tendo em conta a sua idade!) e alguns deles ainda têm traços coloridos, o que nos faz ter uma pequena ideia da beleza que este templo teria no tempo da sua construção.
O templo de Hathor (deusa esposa do deus-Sol) tem uma fachada com 6 estátuas de Ramsés e Nefertari, sua esposa. Esta última, ao contrário do habitual na arte egípcia, é representada por estátuas com a mesma dimensão das do faraó. A estrutura do templo é idêntica à do primeiro, sendo de destacar mais uma vez a beleza dos relevos que se podem admirar no seu interior. Infelizmente, não são permitidas fotos no seu interior!
Outro dos pontos de visita do tour organizado pelo nosso hotel era o templo de Ísis, localizado numa ilha perto da barragem do Assuão (originalmente na ilha de Philae, tendo este templo beneficiado também de uma relocalização efetuada pela UNESCO). Complexo de templos construído durante mais de 700 anos, nas épocas ptolemaica e romana do Egito, foi dedicado ao culto de Ísis e foi durante esta época o ponto de peregrinação mais importante do país. O culto de Ísis, que ressuscitou o seu marido (Osíris) para conceber o seu filho (Hórus), era extremadamente popular, sendo Ísis identificada com outras deusas do Mediterrâneo, acabando por as absorver a todas. É interessante notar que a arte copta (crista) inicial identificava Maria com Ísis e Jesus com Hórus! Philae foi assim o último baluarte da religião antiga (onde se diz que foram gravados os últimos hieróglifos), tendo sido encerrado apenas em 551, quando o império romano já tinha uma nova religião oficial, pouco dada a representações pagãs.
Alguns dos relevos dos templos sofreram com o fervor religioso dos primeiros cristãos e encontram-se bastante vandalizados. Pode até encontrar-se representações de deuses egípcios em que a cabeça foi destruída e substituída por uma cruz cristã! Vandalismo à parte, e dada a sua localização e dimensão, chegar à ilha de barco e avistar este complexo é ainda uma daquelas raras oportunidades onde se pode sentir um pouco do que seria o Egito há mais de 2000 anos. Vale bem a pena o acordar de madrugada!
Por último, Assuão é também famosa por ser o ponto de partida dos cruzeiros que descem o Nilo até Luxor, um dos ex-libris das viagens pelo Egito e que, desde “A Morte no Nilo” de Agatha Christie, fazem parte do imaginário de muitos. A nossa ideia era descer o rio Nilo de felucca (barco tradicional do Nilo) mas no Verão a ausência de vento e o calor tornam esta viagem praticamente impossível. Sendo assim, decidimos fazer o tão afamado Cruzeiro do Nilo. Foram quatro dias e três noites em que deixámos a condição de “backpackers” e vestimos o fato de turistas. A maioria dos turistas do nosso barco são japoneses (bem dispostos) e americanos. Veem-se, no entanto, alguns russos, alemães e dois portugueses (nós!). No cruzeiro está tudo tratado, as tours estão organizadas desde os transportes, o adquirir dos bilhetes para visitar as atracões e os guias, e não precisamos de nos preocupar com nada. Para além disso, temos boa comida (que já andávamos a precisar), cama feita todos os dias e ar condicionado! No cruzeiro pudemos, assim, desfrutar de uma logística montada de tal forma que encaixa perfeitamente na mentalidade e economia egípcias e, talvez por isso, seja difícil viajar neste país fora deste modelo. O “backpacker” no Egito enfrenta bastantes dificuldades de locomoção porque nos tomam como turistas que “arriscaram” sair do barco e se aventuram pelas ruas. Talvez por isso, os diversos “aliciadores” que vivem de infernizar a vida dos turistas, sugerindo todo o tipo de atividades ou vendas, tomam-nos como “dólares com pernas” e pedem-nos preços exorbitantes pelas coisas.
Quando decidimos fazer o cruzeiro pelo Nilo sabíamos o que nos esperava. Todos estes luxos teriam de vir com alguns inconvenientes. Para nós, o maior é a distância que existe entre turistas e a população local. Saímos do barco com um guia contratado, entramos num meio de transporte alugado e saímos no monumento a visitar. O único contacto com egípcios acontece quando passamos pelas lojas à entrada e saída dos monumentos, e eles tentam vender tudo o que podem. É uma realidade completamente diferente daquilo a que estamos habituados. O cruzeiro vale a pena, os monumentos visitados ao longo do Nilo são obrigatórios e a calma e descanso sabem muito bem. Quando deixámos o barco para trás, sabíamos que sentiríamos falta do AC e da comida “buffet internacional”, mas que ganharíamos em veracidade, experiência e conhecimento. O Egito está muito longe dos cruzeiros do Nilo.
Carla e Rui