Um homem avança por uma praça, com um lenço de xadrez preto e branco ao pescoço. Em poucos segundos, o polícia sabe-lhe o nome e a morada, avalia o seu estado de espírito e identifica-o com alguém com a simpatia terrorista que o acessório lhe denuncia. A descrição é fictícia. Este homem não existe. Mas as ferramentas que este agente inventado usa para o etiquetar como suspeito acabam de ser autorizadas pelo Conselho da União Europeia (UE). A partir do dia 2 de fevereiro, todos os países da UE poderão usar instrumentos de inteligência artificial que permitem o reconhecimento facial, a avaliação emocional e a recolha de elementos sobre opções políticas e religiosas de cidadãos.
Encontrei a notícia no jornal Público. Não era manchete. Mas não estava escondida. Tinha chamada de primeira página e lá dentro explicava-se como Portugal foi um dos países que apoiaram a aprovação destas novas regras à luz da qual o anonimato acabou e a monitorização dos cidadãos passa a ser feita com ferramentas que lhes atribuem níveis de risco com base nas emoções que os seus rostos denunciam (ou que estas máquinas acham que denunciam) e em dados que permitam traçar-lhes um perfil sobre as suas crenças.
“Este artigo [2.3] vai contra todas as Constituições, contra os direitos fundamentais, contra o direito europeu”, diz ao Público, sem se identificar, um jurista do PPE no Parlamento Europeu, no texto em que se explica que as forças policiais e as autoridades de imigração e fronteiras vão poder começar a usar sistemas de “reconhecimento emocional”, que “interpretam o humor ou os sentimentos das pessoas”, mas também sistemas de identificação biométrica “que são utilizados para determinar a raça, as opiniões políticas, a religião, a orientação sexual ou mesmo a filiação sindical”.
O sonho de controlo de qualquer ditador passa agora a estar disponível às forças de segurança num dos maiores blocos da democracia ocidental. Alguém se lembra de um debate sobre o tema? Quantos sabiam que estas novas regras estavam a ser cerzidas nas nossas costas? Andamos certamente distraídos. Ou deixámos simplesmente de nos importar? A liberdade que os portugueses escolheram como palavra do ano 2024, numa votação da Porto Editora, é afinal uma letra morta, uma caixa vazia, uma porta aberta para a lei do mais forte.
Mas, claro, é preciso que as polícias consigam detetar e prender os terroristas. É preciso travar os maus. Isto é para o nosso bem. “É uma crise! Uma emergência!”, gritam-nos desde 11 de setembro de 2011, a data em que o impacto de dois aviões sobre duas torres começou a fazer ruir as bases dos direitos, liberdades e garantias que estavam na base das democracias liberais.
Mas o que é uma crise? Quanto tempo dura uma emergência? É impossível desligar os conceitos de “crise” e “emergência” de um momento temporalmente definido. É impossível viver indefinidamente em “crise” e “emergência”. A vida é incompatível com esse sobressalto permanente. E, no entanto, é assim que temos escolhido viver nestas primeiras décadas do século XXI. O uso do verbo “escolher” pode ser ousado, mas não o faço por acaso. Por muito que tenham de inventar novos nomes e pretextos para cada uma das “crises” e “emergências” em que temos vivido nestes anos, por muito que elas surjam de acontecimentos reais a que é preciso dar resposta, as respostas que lhes damos são fruto de escolhas.
Neste mundo novo de inteligências artificiais, de algoritmos, de dados, de liberdades que só protegem os mais fortes, a escolha é um elemento subversivo. Dizem-nos que não há alternativa. Está tudo determinado. A vida é feita em laboratório, numa equação tecnocrática e opaca, que não nos cabe compreender, mas aceitar. O consenso politicamente construído das democracias está a abrir espaço à mera obediência.
Enquanto nos indignamos em debates inflamados sobre o caso do dia, enquanto nos entretemos em leituras semióticas sobre o acontecimento do momento, enquanto partilhamos memes e piadas que ilustram uma realidade que parece ter ultrapassado todas as caricaturas, regras como esta são aprovadas em silêncio, em salas fechadas, algures em edifícios forrados a alcatifas. Nas nossas costas. Mas só enquanto escolhermos não olhar.
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