Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Esta semana, a covid-19 perdeu o estatuto de “doença crítica para a sociedade” na Dinamarca. Graças à vacinação, o vírus está sob controlo e o virar da página espreita ao virar da esquina. Portugal para lá caminha, com 4 em cada 5 cidadãos vacinados. Agora que o ciclo “depois de Corona” (d. C.) se anuncia com mais segurança, sentimos de repente que já não sabemos quem somos, o que fazemos aqui, quem nos abandonou, de quem nos esquecemos. Como em todas as grandes crises da História, o plano de recuperação terá de levar em conta aquilo que de mais fundamental aprendemos sobre nós próprios. Não será pedir demais que a reflexão sobre o nosso lugar no cosmos mereça a mesma atenção que a bifana de Gordon Ramsey. Já não era mau.
O impacto da pandemia nas várias esferas da organização humana dominará, naturalmente, o campo das ciências sociais nos tempos vindouros. A crise mundial forçou o planeta ao interior de um tubo de ensaio, abrindo caminho a oportunidades extraordinárias para compreender melhor o comportamento humano. Como nunca, será possível sintetizar padrões na resposta à transformação radical e involuntária das nossas rotinas, da Bolívia à Beira Interior.
Uma dessas séries de estudos centra-se no modo como a pandemia afetou as nossas relações – amorosas, familiares, de amizade – em função do isolamento, do distanciamento, do confinamento. Em “Social and parasocial relationships during covid-19 social distancing” (Relações sociais e parassociais durante o distanciamento social da covid-19), Bradley J. Bond testou o efeito do afastamento nas relações e obteve conclusões sobre a implicação das restrições covid nas relações sociais, mas também nas relações parassociais: as nossas relações com celebridades e personagens fictícias. O estudo conclui que a quebra do contacto humano levou os grupos observados a sentir maior proximidade de figuras televisivas e personagens de ficção. Aparentemente, estamos de tal modo programados para nos afeiçoarmos ao outro que, perante a falta de encontro, criamos laços com pessoas que não nos conhecem ou nem sequer existem, como o protagonista de uma série ou a heroína de um livro. O isolamento torna-nos dependentes delas, com elas sentimo-nos mais fortes e acompanhados. Independentemente de serem relações unilaterais, há um sentimento de desamparo que se apazigua por via da ligação a pessoas que nos animam e/ou representam um modelo para nós.
Mas pode não ser uma mera questão de carência e isolamento. Da Psicologia, sabe-se que há uma propensão humana para a procura de líderes perante a crise, o medo e a imprevisibilidade. Em pânico, as pessoas correm a procurar figuras de autoridade que as orientem. A violência das adversidades traz à tona a natureza gregária dos seres humanos e a sua predisposição para a organização hierárquica: os grupos estratificam-se entre quem lidera e quem segue. Daqui, podemos conjecturar que a aproximação do público aos influenciadores é um reflexo do isolamento social que o deixa carente, mas também do medo que o desorienta. A solidão e o pânico levam-nos à procura de ligações novas, mas também de figuras de referência.
Imagino que todos possamos relacionar-nos com isto. A televisão, a Internet e as redes sociais alimentam a sensação de que nos relacionamos com pessoas com as quais não temos a mínima ligação. É interessante fazermos o exercício de tentar perceber se essa sensação cresceu durante a pandemia. Entre as pessoas isoladas, de idade, pouco ativas, sempre foi comum encontrar quem mostrasse dependência de programas de televisão, apresentadores a quem dão alcunhas carinhosas, de quem se sentem verdadeiros amigos, com quem passam momentos de alegria e distração, na falta de contacto físico. “O Preço Certo em Euros” é um programa assim e Fernando Mendes desempenha um papel fundamental na vida de muitas pessoas. Calor e companhia. Mas é interessante testar versões contemporâneas, personalizadas, tidas como mais sofisticadas desta relação. Sentimo-nos hoje mais próximos de John Oliver? Tenho amigos que sim, como conheço quem se tenha afeiçoado como nunca a Bruno Nogueira. Passámos a ser mais religiosos no acompanhamento de certos programas, certos colunistas, certos podcasts, certos livestreams? Provavelmente. Falhei muito poucos lives do Marc Rebillet. Como milhões de pessoas, estou grato a um punhado de escritores, músicos, comentadores e entertainers que atravessaram a pandemia comigo, sem me conhecerem de lado nenhum.
Não vale a pena voltarmos a viver como quem nunca conheceu o isolamento. Até quem nunca pôde isolar-se totalmente experimentou a falta de convívio, a frustração, o desamparo da distância. Depois de Corona (d. C), o combate à solidão – em particular, dos mais frágeis – terá de ser prioridade, com a empatia de uma comunidade que a sentiu na própria pele.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.