Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse ato a matasse. Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher. Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o ato de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida.”
Estas são passagens de um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de outubro de 2017. O relator é o Juiz Desembargador Neto de Moura e teve a bênção da Juíza Desembargadora Maria Luísa Arantes.
O mesmo juiz já nos “explicara”, num outro Acórdão, que “uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral.”
É que a questão é essa. Como já foi salientado, não estamos apenas perante um juiz que toma uma decisão individual com a sua colega. Estamos perante uma decisão do Estado. Os Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. Administram a justiça assegurando, como a Constituição (CRP) dita, a defesa dos direitos, liberdades e garantias de todas e de todos nós. Por isso, quando um Tribunal fala, o Estado fala.
E que disse o Estado? O Estado, através deste Acórdão, legitimou a desigualdade de género. Explicou ao povo, em desobediência à CRP e a convenções internacionais, que a misoginia (sim, o ódio às mulheres) é normal. Incentivou, por isso, a violência sobre as mulheres. A vítima terrivelmente agredida era – pode ler-se no Acórdão – mulher “de ambos” (dos agressores marido e ex-amante). Nós, mulheres, somos assim, em 2017 (num Estado laico e igualitário), putativas desavergonhadas, desleais, imorais, fúteis, desonestas, propriedade de homens, pecadoras e até devíamos estar agradecidas por não nos calhar a lapidação como noutros países. É andarmos com juízo, atentas às tradições sexistas, atentas às passagens dos livros religiosos que nos espezinham, atentas à desigual liberdade sexual de que evidentemente gozam homens e mulheres.
Foi este horror que o Estado nos disse. Disse-o a nós, mulheres, e disse-o a toda uma sociedade onde o sexismo e a misoginia estão identificados como fator de morte. Este horror, com precedentes, é uma instigação à violência de género. Que fazer? Dizer não. Afirmar a igualdade de género e a tarefa fundamental do Estado de promover a igualdade entre homens e mulheres. Não nos contentarmos com reações pífias do Conselho Superior de Magistratura (afinal, uma das causas da violência jurisdicional aqui relatada é ela contar com a impunidade). Perceber que estamos perante uma questão social e política para a qual todas e todos são convocados. Recordar as causas profundas da violência de género e de decisões como esta e, por isso, parar de fazer paródias com quem se esforça para que a igualdade comece a ser incutida na infância, nomeadamente rejeitando livrinhos para rapazes e livrinhos para raparigas com tarefas diferentes. Sim, começa aí, e se os Tribunais continuam a refletir o sexismo e não a CRP, perguntar por que raio é a formação em matéria de violência de género no Centro de Estudos Judiciários reduzida a quase nada. Revoltarmo-nos e dizermos que já chega. Rebater (como faço desde que estudei Direito da Família) todos os que insistem num absurdo dever de manter relações sexuais com o cônjuge, antes afirmando a nossa liberdade sexual, a nossa indisponibilidade absoluta de levar com esta gente sentada nos nossos Tribunais. Os Tribunais falam por nós, em nosso nome, explicava mais acima. Com a devida vénia, que é nenhuma, o Juiz Neto de Moura e a Juíza Maria Luísa Arantes não falaram em nosso nome. Falaram em nome da opressão histórica e atual a que nós, mulheres, estamos sujeitas. Incentivaram essa opressão. Lapidaram-nos.
São eles que merecem ser julgados. É o que nos cabe fazer.
(Artigo publicado na VISÃO 1287, de 2 de novembro de 2017)