O meu trabalho é escrever até que as pedras se tornem mais leves que a água. Não são romances o que faço, não conto histórias, não pretendo entreter, nem ser divertido, nem ser interessante: só quero que as pedras se tornem mais leves que a água. Em pequeno, à noite, no verão, de luz apagada, ouvia o mar na cama: a mesma onda sempre, ainda hoje a mesma onda a trazer a praia e a levar a praia e, ao levar a praia, eu suspenso do nada sem tocar nos lençóis. A cómoda do quarto estalava de vez em quando, perto do vidro da janela um pinheiro sem fim. Durante o dia tornava–se outra árvore mas conhecia melhor a do escuro, que me interrogava, interrogava
– Tu
até a primeira nuvem cor de laranja do nascimento do dia lhe selar os lábios. Nenhum melro ainda, nem um passo lá fora, o mundo desabitado de gente, o primeiro cão daqui a nada, rente ao muro, a tossir, com um fio de saliva pendurado do queixo. Um desses pobres cães que comem restos de bichos mortos, coçam uma orelha com a pata, vão-se embora a pensar. Do lado da serra um canavial, um sapo grande debruçado no parapeito de si mesmo, severo, a pensar também. Até que as pedras se tornem mais leves que a água. E, a partir desse momento, não escrevo mais. Deixo de existir, claro que deixo de existir: já não sou mais necessário.
Que vida foi a minha, fiz o quê? A casa cresce, o número de degraus da escada do jardim para o primeiro andar aumentam. No lava-loiças um pingo de torneira, de longe em longe, nos pratos. Treme, alonga-se, cai, desaparece. Uma vassoura encostada à parede. O fogão negro, negro. Moscas no fio da lâmpada, as da infância que nunca se foram embora, uma porta a bater lá em baixo. Quem? Antes do sol o horizonte lilás.
Que vida foi a minha para além deste trabalho com as pedras? O sapo deve ter-se movido porque continua parado. Um gato, no muro, lambe a sombra de uma folha da pata, intriga-o não poder engoli-la. Que vida foi a minha? Andei em aulas, andei em hospitais. De vez em quando ia para longe, voltava. Senti-me feliz na Transilvânia, nas montanhas. As pedras tinham menos peso já, por essa altura, mas ainda necessitava de muito tempo porque as palavras demoram a impregnar as coisas, entram devagarinho; a ideia da minha morte começa a parecer-se com a minha morte. Às vezes o meu corpo gela, às vezes uma pedra levanta-se. Faltam muitas, ainda. Quando todas forem mais leves do que a água então sim, podem ler-me, escrevi o que era preciso escrever. Há um livro, pronto há um ano, que sai em outubro, chamado “A última porta antes da noite”, outro a publicar no fim do ano que vem, quase pronto, “Para aquela que está sentada no escuro à minha espera”, ficam a faltar três, que desejo que Deus me dê vida e saúde para fazer e depois calo-me para sempre. As pedras estarão mais leves que a água, o círculo fechado e será possível compreender a unidade do trabalho começado com a Memória de Elefante. O resto são estas cronicazinhas, de que se imprimiram algumas coleções, que não pretendem mais do que distrair as pessoas e que sejam agradáveis de ler. Não gostaria que as coleções fossem republicadas como não gostaria que aquelas que se seguiram aparecessem em volume. Tudo o que quero que permaneça são apenas os livros, nos quais joguei a minha vida, a minha saúde e a minha esperança, e onde julgo haver conseguido o que me propus. No seu conjunto constituem uma única obra. Como disse ao princípio não são histórias, não são romances. São um trabalho de desmedida ambição que levará tempo a ser entendido e acerca do qual me referi sempre de uma forma voluntariamente desajeitada e incompleta. Cada título é uma parte de um todo que deveria idealmente ser lido pela ordem em que os diversos segmentos foram publicados, de modo a compreender-se a sua unidade e a forma como cada um deles se encaixa no todo. Claro que exigem muito do leitor mas exigiram muito mais de mim. Não é uma comédia Humana à Balzac, com todo o respeito que por ele tenho, nem uma Recheche como a de Proust, nem um Decameron. Longe disso. É, na minha cabeça, o Livro Total, e não voltarei mais a este assunto. A partir de agora, mesmo com os tais cinco volumes que faltam, os dois acabados e os três últimos a seguir, apenas eles existirão. Eu pouco importo a não ser para a meia dúzia de pessoas que espero que gostem de mim. Quereria que no futuro a obra fosse publicada sem nenhum prefácio, sem nenhum comentário. Está completa. Qualquer palavra mais, quer minha quer de outra pessoa seria supérflua. E, por estar completa, não faz sentido nenhuma dedicatória em nenhum tomo. O último, em princípio, será publicado em 2020. Depois, se continuar vivo, irei extinguir-me como quando, em criança, comecei: a escrever poemas que desaparecerão no cesto dos papéis conforme aqueles que compunha, menino, em segredo, em silêncio, já sem o meu irmão João, que partilhava o espaço comigo porque há muito tempo que, infelizmente, deixámos de viver no mesmo quarto. Não imaginas mano, as saudades que tenho desse tempo. Se por acaso viesses tudo voltava a ser como dantes: tu a estudares e eu estendido na cama a olhar o tecto, levantando-me para encher páginas de versos que tinha pudor em te mostrar. Sempre achei que isso acabaria por nos acontecer. Anos depois passámos uma noite na casa da praia, no mesmo quarto, nas mesmas camas. Não calculas o que me comoveu estarmos de novo juntos. Acordei antes de ti e fiz-te uma festa na cabeça. Como desde sempre soubemos o que o outro sentia tenho a certeza que te lembras disso. Agora, a esta distância, acho que fomos felizes durante aqueles anos. Não me digas que não para eu não ficar triste.