Ultimamente, estou farto de ler e ouvir a respeito do ghosting. Para quem não saiba, esta palavra refere-se a pessoas que acabam relações sentimentais ou matrimoniais através do desaparecimento. Como a história recorrente do nosso tempo da ditadura: «saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou». Com o risco de ser subjectivo, formei a opinião de este comportamento ser, de uma maneira geral, criticado. Por revelar falta de coragem. Eu, apesar de não gostar de ser juiz em causa (neste caso, é mais casa) alheia, não acho má ideia. Pode até ser inteligente. Se o risco, por exemplo para a mulher, é de ter como resposta à intenção de divórcio uma valente sova, ou mesmo algo mais grave, acho bem que desapareça até que a loucura amaine. Ou se, no caso do homem, o risco é de ficar sem roupa – lançada da quarto andar –, ou sem discos ou quadros (a louça da cozinha ainda é o menos), também compreendo a transformação fantasmagórica. Por outras palavras, quero explicar que, segundo a minha opinião, a culpa do ghosting não é de quem desaparece, mas de quem convence o outro de que o melhor mesmo é desaparecer. E mais, quero também esclarecer que penso que as pessoas que impelem os outros ao ghosting são pessoas desequilibradas e fracas, que reagem com violência perante actos que resultam de opções livres do outro – foi Baudelaire que disse que faltava à Declaração dos Direitos do Homem o direito de uma pessoa «se ir embora».
Muito bem. Como já se terá percebido, não estou com esta conversa para falar de questões amorosas. Estou a tentar introduzir uma questão ainda mais actual: a reacção de despeito da menina Europa quando o vilão Reino Unido deu à sola. Foi quase uma peça neo-realista. Sem querer acreditar no que via, assisti ao senhor Juncker – pessoa com a qual sempre antipatizei de sobremaneira – perguntar ao deputado inglês Farage o que fazia no parlamento se queria abandonar a UE. E assisti aos apupos em relação a este membro eleito de pleno direito, só porque a sua opinião não era a da maioria.
Devo dizer – já o disse, aliás, na crónica anterior – que tenho imensa pena que o Reino Unido saia. E ainda mais me revolta como a democracia mais antiga e talvez profunda da Europa se deixou manipular pela miséria do nacionalismo (brinco com o título do livro de Popper, que vem muito a propósito: «A miséria do historicismo»). Mas não consigo aceitar que Junckers e Hollandes dêem lições do que quer que seja aos ingleses. Farage – com quem, por razões óbvias, também não simpatizo – deu-lhes uma lição e disse: «quando para cá vim, disse-vos que iria tentar que o R.U. saísse da U.E.. Riram-se de mim. Por que não se riem agora?».
Tirando Merkel (e Schulz – ai os alemães), que, mais uma vez, se revelou uma estadista à altura, os burocratas de Bruxelas surgiram aos meus olhos como o cônjuge despeitado e cobarde que atira o outro do quarto andar ou parte a loiça toda. Tive vergonha de me ver representado por gente semelhante.
Os ingleses vão amargar. E é talvez castigo acertado para quem se deixou iludir pelo saudosismo bacoco do império. A rainha, se servisse para alguma coisa, devia ter actuado de forma firme e apostado o pescoço contra esse nacionalismo que desvirtua o «old sport» inglês. E vão amargar durante bastante tempo. E vamos assistir – como já assistimos nestes dias – a ataques, em Londres, contra cidadãos comunitários (para não falar dos outros). E o feitiço vai virar-se contra o feiticeiro e os ingleses vão perceber que já não são o que pensam que são. Vão percebê-lo quando voltarem a perder com os islandeses, mas noutro tipo de campeonato. Nessa altura compreenderão a falta que lhes faz a visão cosmopolita do mundo que tão bem têm defendido nestes últimos anos.
Mas não sou inglês. Por isso, ainda me preocupa mais a pequenez dos 27 que ficaram. Que também não perceberam nada. Sobretudo, não perceberam até que ponto, e tão importante como o nacionalismo, foi decisiva para o Brexit a saturação que a gente das ilhas já tinha de tanta estupidez continental. E esta ficou do nosso lado. Pelos vistos, de plena saúde.
Não há nada a fazer. Provavelmente, vamos sair todos, mais dia menos dia. Mas aconselho o próximo país, a sair com ghosting: deixa de ir às reuniões e aos plenários, deixa de enviar relatórios e números, deixa de atender os telefones, deixa de receber os mensageiros. Mais vale isso do que ser frontal e acabar enxovalhado no parlamento dos pequeninos.