Tal como Friedrich Nietzsche, Carl Jung está, por estes dias, transformado em estrela pop das redes sociais, apanhado em movimentos que querem ensinar-nos a viver melhor, sobretudo a viver de forma mais fácil num mundo cada vez mais difícil. Talvez uma das citações mais conhecidas do psiquiatra suíço, que muito tem servido para alimentar teorias pseudocientíficas new age, é esta: “Tudo o que nos irrita nos outros pode levar-nos a uma melhor compreensão sobre nós próprios.”
Ora, não é preciso ter o curso de psicanálise nem conhecer a fundo toda a obra de Jung para entender a raiva, o desprezo e a irritação generalizadas contra as pessoas que integraram a flotilha humanitária que queria levar alimentos e medicamentos para Gaza. Começando no comentário do ministro da Defesa, Nuno Melo, de que os ativistas “já fizeram o seu número”, e acabando nos mais torpes insultos nas redes sociais.
Mas há aqui dois planos. Um é ideológico, como o do ministro da Defesa, que chegou mesmo a colocar os cidadãos portugueses em perigo quando se referiu, na semana passada em Mondim de Basto, a “um conjunto de pessoas que se dirige à Faixa de Gaza para apoiar uma organização assim [o Hamas]”.
O outro plano é o das pessoas que não negam as atrocidades que estão a ser cometidas em Gaza, não negam as mortes nem a fome, apoiam o Governo no reconhecimento do Estado Palestiniano, mas ficam irritadas com os ativistas que chegam lá sem conseguir entregar comida nenhuma e acabam detidos pelas forças israelitas. Fizeram o seu número, sim, e foram bem-sucedidos, pois agiram para chamar a atenção – que é muito mais do que qualquer um dos que destilam o seu ódio faz. E não, gritar nas redes sociais não é agir.
O mesmo para as raivas que desperta Greta Thunberg em pessoas que não negam as alterações climáticas. O que há em Greta que tanto enerva esta gente? Talvez o facto de ser uma miúda de ação, que aos 22 anos já fez muito mais pelo planeta do que estes irritados fizeram a vida toda. Jung explica…
Agir é sair à rua, como milhares e milhares de pessoas fizeram no sábado, por toda a Europa, apelando ao fim do genocídio em Gaza, condenando Israel por ter intercetado a Flotilha Global Sumud. Agir foi o que os portugueses fizeram em 1999, de forma espontânea, por Timor. Mariana Mortágua resumiu bem a ideia quando aterrou em Lisboa, depois de ser repatriada: “Não somos heróis, somos pessoas que estão a fazer aquilo que os nossos governos não estão a fazer.”
O que estava a nosso Governo a fazer quando três caças F-35, que os Estados Unidos venderam a Israel, fizeram escala na Base das Lajes, nos Açores? Portugal entrou na guerra do Médio Oriente? As explicações são atabalhoadas e, numa primeira reação, o Ministério dos Negócios Estrangeiros culpou o Ministério da Defesa, acabando por recuar. Agora o Governo diz que a culpa é dos serviços que não comunicaram o acontecido ao “nível político”, tentando poupar os ministros.
Enquanto a guerra entra na nossa campanha eleitoral para as autárquicas, à hora de fecho desta edição, Israel e Hamas conversavam no Egito, depois de o Hamas ter anunciado estar disposto a libertar todos os reféns ainda em sua posse. Conseguirão os Estados Unidos o seu tão almejado acordo de paz?