Pode exigir-se a um imigrante hindustânico, ou de qualquer outra parte da Ásia, acabado de aterrar em Portugal, que passe a comer bacalhau com grão, que celebre o Natal, que se ponha a cantarolar um fado ou que vá a uma tourada? E se não fizer, estará ele a desrespeitar a nossa cultura e o nosso modo de vida? Mas como, se há tantos portugueses de gema que querem acabar com as touradas, que detestam fado, que não ligam ao Natal ou que não suportam bacalhau?…
Quando Pedro Nuno Santos diz, numa entrevista ao Expresso, que os imigrantes devem respeitar a nossa cultura e o nosso modo de vida, quer dizer o quê? Que não devem cozinhar o kebab, que não devem cumprir o Ramadão, que deixem de celebrar o Ano Novo Chinês ou que têm de usar o biquíni, nas nossas praias?
Aonde nos leva este tipo de discurso?
É verdade que não devemos tomar títulos gordos pelo contexto geral de uma entrevista. Lida esta, o líder do PS expõe, aparentemente, um conjunto de frases sensatas, ou, pelo menos, de “senso comum”, o que pode não querer dizer bem a mesma coisa… Evidentemente que o respeito pela nossa cultura e pelo nosso modo de vida significa apenas isto: respeitar estes valores é não quererem impor-nos outros. No entanto, esta postura exige reciprocidade: os portugueses também devem respeitar os valores dos que vêm de fora, como devia ter acrescentado o líder do PS. Integrá-los não significa aculturá-los, mas aceitar que pratiquem, entre nós, os seus costumes, desde que estes não violem a lei. Por seu turno, os imigrantes hindustânicos, ou outros, muçulmanos ou hindus, não podem manifestar-se ofendidos por verem as mulheres portuguesas de biquíni na praia; nem têm nada que criticar os nossos hábitos gastronómicos, como o da ingestão de carne de porco ou de vaca; nem devem insurgir-se contra a celebração do Natal. Onde está, então, a fronteira entre o que apenas deve ser respeitado e o que, mais do que isso, deve ser praticado? Já atrás o referimos: na lei. Pedro Nuno Santos faz, portanto, uma lamentável confusão entre o respeito pelo nosso modo de vida e o cumprimento da lei. Mesmo quando, com boas intenções, dá como exemplo o respeito pelos direitos das mulheres – talvez para que, com esta nuance dita “progressista”, não confundam o seu discurso com o da extrema-direita. O exemplo é infeliz, porém: um país com os altos índices de violência doméstica sobre as mulheres, incluindo o assassínio, por maridos, namorados ou companheiros, de dezenas delas por ano, não pode dizer que entre os seus “valores culturais” e o “seu modo de vida” esteja o respeito pelos direitos das mulheres. Mais uma vez, não é a cultura nem os costumes que os garantem, mas a lei portuguesa. Por exemplo, qualquer muçulmana é livre de usar o hijab ou mesmo uma burca: um Estado que não seja totalitário não deve interferir nem nas crenças religiosas nem nos gostos de vestuário. Mas o caso muda de figura se for o marido, o irmão ou o imã a exigir-lhe que se vista assim, cometendo, com isso, violência doméstica por coação. E nenhum preceito religioso pode justificar, por exemplo, a excisão feminina. Ponto.
O respeito recíproco pelos “valores culturais” ou pelos “modos de vida” significa apenas isto: live and let live. Uma verdade de La Palice que não precisa de ser vincada, por um político sénior, numa importante entrevista, exceto quando, por detrás da ênfase, se encontra uma intenção escondida. (Por exemplo, a de piscar o olho a um eleitorado que, mesmo que vote, tradicionalmente, à esquerda, começa a ficar contaminado pelas narrativas sobre imigração e segurança, uma agenda artificialmente imposta por determinadas forças políticas, e sem nada que o justifique). Veja-se, a propósito, o relatório desta semana sobre a criminalidade na cidade de Lisboa, que demonstra como ela desceu nos últimos anos, em especial, em 2024… De caminho, os jornalistas seguem essa agenda, fazendo do tema o principal assunto das entrevistas a políticos, fechando um círculo vicioso de onde é difícil escapar.
Apostaríamos que Pedro Nuno Santos já comprou, numa ou noutra ocasião, fantasias de Halloween para o seu filho de 7 anos. Provavelmente, nem por um momento lhe passou pela cabeça que a celebração do Halloween é uma importação cultural, imposta, sub-repticiamente, pelo soft power capitalista (aliás, tal como o São Valentim), em “desrespeito” – se quisermos caricaturar, claro! – pelos “nossos valores culturais” ou o “nosso modo de vida”. Como se constata, é tudo uma questão de… perceção.
Golpe de vista
Casos e casões
A demissão do secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, Hernâni Dias, era o mínimo que se esperava de alguém que, além de investigado pela Procuradoria Europeia por um caso enquanto autarca, constituiu duas empresas do ramo imobiliário, já depois de ser governante, e quando tinha sob sua alçada política o diploma da nova e polémica lei dos solos e, portanto, informação privilegiada. Entetanto, a lei está aprovada, ele está fora do Governo e, portanto, fica livre para fazer os seus negócios. Tudo está bem quando acaba mal.
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