Qualquer bom escritor escreve uma frase, ou uma passagem, genial. Acontece-lhe, de tempos a tempos. Aos escritores muito bons isso é permitido mais vezes: as passagens geniais surgem-lhes com alguma regularidade, entre outras também ao alcance dos demais. É a constância, a frequência na genialidade, que os distingue. E, depois, há autores – raros – que conseguem ser brilhantes linha após linha e que, por isso, em duas ou três páginas, nos fazem gastar o bico do lápis por inteiro, de tanto sublinharmos. A dado momento, já nada se distingue e tudo está sublinhado. Como exemplos, posso referir Laurence Sterne ou Camilo José Cela. Com escritores deste nível, pode dar-se o caso de não nos restar alternativa senão deixarmos de sublinhar, ou passarmos a assinalar apenas as passagens que não são extraordinárias, como em 2021 cheguei a fazer em vários textos de Miguel Esteves Cardoso (MEC).
Nesse ano, enquanto editor de MEC, ofereci a mim mesmo uma entusiasmante empreitada: ler todas as crónicas por ele publicadas em livro, a fim de selecionar as cem melhores e com elas dar corpo a uma antologia dos então quase quarenta anos de percurso do escritor. Por ser leitor e devoto de Esteves Cardoso, eu já tinha lido todos os livros, mas, embora guardasse memória de muitas crónicas, ser-me-ia impossível, como é evidente, estruturar uma antologia sem reler tudo com o intuito específico da seleção. Até àquela altura, MEC tinha escrito e publicado na imprensa – de acordo com as contas que ele e eu fizemos – mais de treze mil crónicas. Nem todas foram posteriormente editadas em livro, mas eu estava seguro de que a amostra – mais de dez títulos – seria bastante para criar um volume não só representativo do estilo e da respetiva evolução, mas também e, sobretudo, da extrema qualidade do autor.
Defini critérios e, a partir deles, um sistema de avaliação das crónicas, e atirei-me à leitura, como um leão faminto a uma presa acabada de tombar. Era evidente que, se eu selecionava a partir do já selecionado, aquele livro iria reunir não propriamente aquilo que eu considerava o melhor, em absoluto, mas o que eu elegia de entre aquilo que o próprio autor já havia destacado como merecedor de figurar em livro. De certo modo, MEC tinha feito uma primeira seleção e eu, a partir dela, faria a escolha final.
Miguel Esteves Cardoso começou a escrever com verdade – e a distinguir-se – quando, de modo estruturado e consequente, conseguiu transportar para os textos duas características pessoais: o gosto pelo lúdico e a tendência para o exagero (o que terá acontecido algures entre 1975 e 1979, enquanto estudava em Manchester, como obras a publicar no futuro demonstrarão). Alicerçadas numa inteligência superior e num talento constantemente exercitado, estas duas particularidades deram corpo a um estilo singular, carregado de humor e de futuro, que cativou e influenciou gerações – daí eu ter escrito, na referida edição de As 100 Melhores Crónicas, que MEC foi o nosso primeiro influenciador, antes mesmo de se falar em influenciadores. Um estilo que está na base de muitos textos brilhantes, tantas vezes sublinhados, fotocopiados e até afixados em cadernos ou roupeiros. Trata-se de crónicas que, como referi nessa edição, motivaram telefonemas, discussões, namoros e até casamentos, e que vezes sem conta foram enviadas por e-mail e partilhadas nas redes sociais, por terem feito rir ou chorar – por, ao lê-las, terem feito o leitor sentir, como só MEC consegue fazer sentir, que «é mesmo isto».
Mas de que modo erigiu tal estilo? Aborrecido com a academia, na qual brilhava sem dificuldades, o cronista cedo demonstrou uma grande capacidade de não ser sério na abordagem aos assuntos ditos sérios. O humor, que na literatura portuguesa sempre existiu (basta que pensemos em Camões, ou em Eça), tem como base, em MEC, uma aceção da escrita como território que também é de diversão, como o tal espaço lúdico que referi acima. Por temperamento, ou por caráter, e num país que só conhecia o oposto, depois de décadas de cinzentismo e opressão, o autor preservou uma forma de ser criança, um modo de ver o mundo sem os óculos deformadores de quem carrega já às costas o peso das responsabilidades e do social e politicamente correto.
A essa dimensão lúdica da escrita, juntou um discurso hiperbólico, recurso expressivo que, por cá, país grave e formal, nunca foi suficientemente destacado como uma virtude. Sucede que os mestres – e por isso referi Camões e Eça – reconhecem-no, usam-no e valorizam-no. Mario Vargas Llosa, por exemplo, na tese de doutoramento que fez sobre a obra de Gabriel Garcia Márquez, considera que o exagero não é um modo de alterar a realidade, mas sim uma forma de a fazer ver. E, de facto, os exageros de MEC – sobre as melhores bandas de sempre, os piores escritores, as melhores comidas, ou os piores políticos – ajudaram-nos sempre a ver melhor o país que fomos sendo.
Ao dizê-lo a brincar – através de listas, de fórmulas pretensamente infalíveis ou de pura ironia –, o escritor pôs o país do pós-ditadura a exercitar a divisa latina «ridendo castigat mores». Como opção de construção de identidade autoral, terá sido arriscado, mas a juventude encerra uma bravura própria que, por ter feito marca estilística, Miguel Esteves Cardoso nunca pôde abandonar. E ainda bem. A isso se junta a singularidade das perspetivas e prioridades que assume, outro dos traços que o distinguem, mas que aqui não tenho espaço para abordar. Ainda assim, o que já referi parece-me sustentar sem dificuldade que, quando se parte para a leitura de MEC, se aceita tacitamente que se vai encontrar o inesperado. E é, em grande medida, graças a essa capacidade de surpreender quem lê que MEC se mostra brilhante mais vezes do que a maioria, obrigando a um contínuo e deleitado gastar de grafite.
Miguel Esteves Cardoso não receou colocar-se por inteiro na escrita e foi graças a isso que se distinguiu. Composto por características próprias, o estilo intrépido de MEC advém de traços pessoais. É por isso que, para além do talento literário, merece a minha admiração a coragem do escritor perante a vida – a bravura de escolher a própria vida. Durante anos, o que mais apreciámos em MEC foi a ousadia de mostrar quem era e de, num país aborrecido, assumir opiniões provocatórias, contracorrente, originais e divertidas.
No entanto, a partir de dado momento, comecei a admirar-lhe sobretudo a capacidade – a coragem – de ser quem quer ser, de fazer escolhas diferentes e até, para muitos, censuráveis (o isolamento e a indisponibilidade para eventos, entrevistas e até para amigos), porque – corajosamente – queria muito ser assim, não pelo que isso pudesse representar para os outros, mas pelo que representaria para ele mesmo. MEC escolheu ser o único escritor verdadeiro que poderia ser – e, a meu ver, a opção foi boa o bastante para já lhe ser devido o Prémio Camões, mas deixarei esse tema para outra ocasião.
Mais tarde, escolheu a vida que quis ter – uma vida de reclusão e de dedicação à leitura, à escrita e ao seu grande amor, Maria João. Talvez para alguns o tenha feito com certo exagero, mas quem somos nós para avaliar os mais bravos entre os corajosos? A mim, cabe-me publicar-lhe o que escreve, reeditar o que escreveu, celebrar esses escritos sempre que possível e, afortunadamente, viver a felicidade de o ter visto, em 2023, aos 67 anos, receber o primeiro (e tão inacreditavelmente tardio quanto justo) prémio literário (o APE de crónica) e saborear a grande homenagem que lhe foi feita na Escritaria, em Penafiel. Está de parabéns, o Miguel. Para um bravo como ele, isto não pode ficar por aqui.