O título, Integrado Marginal, é de uma ‘autoclassificação’ do escritor, numa entrevista. E está tão certa como outras suas ‘autoclassificações’. Será ela, porém, para uma biografia, o melhor e mais apelativo título? Não sei: fazer um título, sobretudo de um livro, é (quase) sempre das coisas mais difíceis para um autor ou um editor. E se começo colocando tal dúvida, é apenas como uma espécie de “truque” para este texto não ser só uma sequência de certezas sobre a qualidade da biografia de José Cardoso Pires, escrita por Bruno Vieira do Amaral (BVA). Que na entrevista nas páginas anteriores diz sobre a biografia e o biografado coisas tão interessantes e pertinentes que me dispensam de algumas observações sem elas necessárias, e permitem que nas linhas seguintes, de par com o(s) juízo(s) crítico(s), possa haver algo de pessoal e testemunhal.
O livro mostra um trabalho muito sério e profundo de pesquisa, sobre os múltiplos aspetos do percurso do escritor e cidadão empenhado. Em especial sobre a sua obra literária – e, paralelamente, convergentemente, a sua intervenção jornalística e cívica. Porque o claro objetivo primordial, essencial, de Marginal Integrado, é ser a “biografia de um escritor” – com uma vida cheia, em diversos domínios, amiúde agitada, mas em última instância sempre colocando acima de tudo a sua condição de escritor e o imperativo de a cumprir, com a invariável exigência de rigor e qualidade que o caracterizava.
Isto ressalta bem nesta biografia. Sem prejuízo de por igual nela estar bem presente, de corpo inteiro, o homem a vários títulos singular, na sua proclamada e efetiva independência, que não o impedia, pelo contrário, de tomar posições, mormente políticas e em especial contra a ditadura. Assim, pertenceu inclusive ao PCP, embora sem ter nunca qualquer posição de direção – e deixando de pertencer, por sua iniciativa, logo após o 25 de Abril, quando o “movimento” era em sentido inverso… O que dá uma expressiva ideia de uma sua certa forma de estar e de ser.
Ao sublinha o objetivo e o ângulo de abordagem prioritários ou centrais da biografia, estou a dizer também que nela entram, como se impunha, tudo o que de mais ‘pessoal’ para o efeito importa. Mas não o que lhe é alheio. Por exemplo, BVA fala da vida familiar de Cardoso Pires, sem ocultar seus aspetos um pouco peculiares, em particular na relação com sua mulher e companheira de sempre, Edite, de fundamental importância na sua vida e na criação de condições para o “Zé” (como ela, as próprias filhas e os amigos mais próximos o tratavam) poder escrever o que escreveu. Inexiste, porém, referência a qualquer eventual “caso” sentimental e/ou sexual, ou a outros aspetos de natureza mais privada, íntima. Pela seriedade do biógrafo e porque tais possíveis “casos” não tiveram influência na obra do escritor. E também nisto Integrado Marginal se distingue de muitas outras biografias.
É muito completo e esclarecedor o levantamento, de forma inevitavelmente sintética, que BVA faz de tudo que JCP escreveu e do que de mais importante foi escrito sobre ele e sua obra. Em particular sobre os primeiros livros de ficção, sobre Cartilha do Marialva, e sobre essas duas obras maiores da nossa ficção contemporânea que são O Delfim e Balada da Praia dos Cães; bem assim sobre a sua obra prima final, De Profundis, Valsa Lenta. Além de muito completo e bem articulado esse levantamento, o biógrafo – ele próprio também escritor e de mérito -, valoriza-o com interessantes interpretações ou observações que lhe acrescenta.
Por outro lado, Integrado Marginal é igualmente muito bem documentado sobre os múltiplos outros aspetos do preenchido e diversificado percurso de vida e atividade de JCP. Desde a criança já rebelde ao “marinheiro” embarcado de uma só viagem; desde o jovem amigo de Luís Pacheco e O’Neill ao frequentador da noite lesto a resolver um conflito à cabeçada; do período em que esteve no Brasil* aos anos em que foi escritor residente no King´s College, em Londres; do por vários motivos frequente viajante ao editor, designadamente da Folio, ao criador, ou primeiro responsável, de revistas como a pioneira Almanaque, de suplementos literários como & etc (no Jornal do Fundão) ou, em certa época, o do Diário de Lisboa, onde também inventou o suplemento “A Mosca”, e do qual foi diretor-adjunto a seguir ao 25 de Abril; etc., etc.
Etc., etc., repito, com destaque para domínios ligados à intervenção política, em especial na oposição à ditadura. E, neste campo, entre o material “substancial” a que BVA largamente recorre, estão cartas de JCP para o editor Victor Ramos, e sobretudo para o escritor Castro Soromenho, ambos seus amigos exilados no Brasil. Eram enviadas do estrangeiro, para escaparem ao controle pidesco nos correios, e assim Cardoso Pires podia escrever à vontade sobre a situação portuguesa.
E também nesta ótica Integrado Marginal é importante. Importante para o conhecimento do clima que se vivia, mesmo de toda uma época, num país sob o jugo da tirania. Sendo de realçar a curiosa ou feliz circunstância da saída deste livro quase coincidir com o início da publicação do Diário de Mário Dionísio, tema principal da nossa última edição. Recorde-se que o autor de A Paleta e o Mundo foi o primeiro, mais atento, constante e influente leitor/crítico da obra de JCP, que lhe deu para ler em original e em primeira mão muitos dos seus livros. Entre os dois, após um “incidente” aquando da querela do neorrealismo, de que MD fala e muito o magoou, foi muito boa a relação até ao fim.
A este como a outros propósitos poderia lembrar algumas histórias que vivi, como amigo muito próximo, e a certa altura editor, de ambos. Que por igual colaboraram, a meu pedido, e estiveram sempre presentes, em O Jornal e aqui no JL – e à ligação do JCP com o JL me refiro no comentário da p. 3. Mas como afinal isso já aqui não “cabe”, volto ao princípio e saliento que Integrado Marginal tem não poucas revelações, maiores ou menores.
Entre as menores, e que só a mim respeita, está citação de uma entrevista que fiz ao “Zé” e de que já não me lembrava. Fui ler. É de início de 1976, o 25 de Abril ainda bem vivo em todos nós, com o significativo título, citando o entrevistado, “Agora conjugamos tudo em termos de futuro”. E com uma daquelas suas autoclassificações que também podia ser título: um “animal salutarmente incómodo” se confessava o que, a abrir, afirmo ser dos maiores da nossa literatura, “um tipo ente seco e risonho, tão nítido e decidido na fala, na bebida ou na política, como denso e depurado na escrita inconfundível.”
E muito mais haveria, haverá, a dizer sobre este Integrado Marginal, integrado numa louvável, e até agora muito conseguida, coleção de “biografias de grandes figuras da cultura portuguesa contemporânea”, da responsabilidade editorial de Rui Couceiro, que se iniciou com a bela biografia de Agustina por Isabel Rio Novo, a que se seguiu a de Manoel de Oliveira por Paulo José Miranda – e agora esta. Na circunstância me parecendo oportuno e justo lembrar que há 21 anos, no final de 1999, um ano e pouco após a sua morte, foi publicada um Fotobiografia de José Cardoso Pires, da autoria de Inês Pedrosa, e na qual o escritor ainda colaborou, com entusiasmo, na sua organização, escolha de fotos e documentos a reproduzir.
Fotobiografia de iniciativa do editor Nelson de Matos e publicada na então sua (e bastante diferente) Dom Quixote, com um bonito e sentido prefácio da Inês, pode-se dizer, sobretudo com as numerosas imagens de toda a vida do escritor, ela de certa forma completa, a biografia agora a sair. A fechá-la, textos/testemunhos de Antonio Tabucchi, Lobo Antunes, Lídia Jorge, Maria Lúcia Lepecki, Pedro Tamen e deste escriba, que o intitulou “Um luminoso rigor criativo”.
Em síntese e conclusão: muito bem documentada, organizada e escrita, uma excelente biografia de grande escritor e figura singular. A ler, obrigatoriamente. E esperando-se que contribua também para trazer novos leitores para a sua obra, em curso de reedição parcial pela Relógio d’Água. J
*O livro poderá conter uma outra imprecisão, mas sem importância. Por exemplo, sobre a estada de JCP no Brasil, em 1959/60, refere-se Chico Buarque como um dos artistas com que teve contacto. Ora isso parece-me difícil: nessa altura Chico tinha 15 ou 16 anos – e a música de Morte e Vida Severina, que o lançou em grande, é de 1965.
Muito bem documentada, organizada e escrita, uma excelente biografia de um grande escritor e figura singular
JCP, com a mulher Edite, um “esteio” da sua vida e obra; à dtª, no lançamento da Balada da Praia dos Cães, JCP com Eduardo Prado Coelho, José Carlos de Vasconcelos (que editou e apresentou o livro) e Augusto Abelaira