“A formação da faculdade da atenção é o verdadeiro fim e quase o único interesse dos estudos”, escrevia Simone Weil, em 1942, numa das suas reflexões publicadas em Espera de Deus.
Oitenta e dois anos mais tarde, a frase ecoa ainda com a força de uma pedra num charco onde a utilidade das coisas é cada vez mais celebrada, em detrimento da sua essência.
Num Mundo pautado pela angústia da pressa, pelo imediatismo e a volatilidade de pensamentos, ideias e relações humanas, dar-nos conta de tal essência implica um esforço acrescido, uma procura consciente ou, como o fotógrafo Daniel Blaufuks (DB) define a sua exposição mais recente, que se inaugurou no MAAT a 17 de julho, “um ato de resistência”.
Com curadoria de João Pinharanda, Os Dias Estão Numerados apresenta mais de 450 obras, fruto daquela que DB considera ter-se transformado na “tarefa de uma vida”: a criação de um diário visual e textual onde regista e comenta o seu quotidiano, desde 2018.
Há seis anos que, todos os dias, em folhas de papel A4 numeradas, Blaufuks cola polaroids, recortes de jornais, anúncios, bilhetes de avião, e manuscreve ou carimba frases em português, alemão, inglês e francês, dando corpo a uma espécie de arquivo de fragmentos de vida. Ao MAAT chega agora uma seleção dos registos realizados entre 2018 e 2022, todos os de 2023 e alguns de 2024.
Os projetos a longo prazo e a entrega ao que “não é fotografável à partida”, provavelmente desinteressante ao olhar dos que não prestam atenção às pequenas coisas, é já imagem de marca na obra do fotógrafo. Em 2017, na Galeria Vera Cortez, Tentativa de Esgotamento reunia as fotografias que, de forma quase religiosa, Blaufuks havia tirado, entre 2009 e 2016, à mesa e à janela da cozinha da sua casa, em Lisboa.
Em Os Dias Estão Numerados, a mesa e a janela estão de volta, e a elas juntam-se frases, imagens de flores, guerras, viagens, concertos, amigos vivos, amigos mortos, paisagens de mar, divisões de uma casa.
“Há folhas das quais se gosta mais e folhas que se gosta menos, mas isso corresponde também ao que é a vida. Há coisas melhores do que outras”, explica DB, enfatizando que, apesar da periodicidade diária da criação, estamos perante um não-diário.
“Acaba por saber-se muito pouco da minha vida. Não é íntimo, os retratos são não-retratos, não estamos aqui a falar de grandes fotografias, mas de uma valorização do disparo instantâneo, que é afetivo”. Not a diary but a state of mind, lê-se numa das páginas expostas. Estado de espírito esse que comporta o registo das não efemeridades, de tudo o que normalmente não nos lembramos quando o ano acaba.
“É um toca e foge. As pessoas não percebem se o meu dia foi aquilo, ou se foi só aquele minuto, aquele segundo em que pensei naquela frase. São pistas”. A recolha constante destas pistas dá forma a um arquivo consistente de fragmentos de vida, espelha a paisagem interior da alma do fotógrafo e a forma como esta percecionou o Mundo num determinado dia, a uma determinada hora, num determinado lugar.
Não estamos aqui a falar de grandes fotografias, mas de uma valorização do disparo instantâneo, que é afetivo
daniel blaufuks – fotógrafo
Observando as 365 obras de 2023, não sabemos o que DB fez ao longo do ano, com quem fez, quando fez, mas conseguimos intuir um ser metódico, por vezes melancólico, que se entrega à contemplação com um espírito inquisitivo.
Percebemos, por exemplo, o quão importante é para o artista a ética vir antes da estética, pensamento de tal forma premente que acabou imortalizado em três obras.
Também não há dúvidas de que é feliz em Veneza, apesar do turismo desenfreado, que a 21 de março compara a terrorismo, e do facto de no dia 6 do mesmo mês duvidar se ama mais a cidade ou as memórias que tem dela.
A faculdade da atenção é de facto a arma mais eficaz na construção de um arquivo deste tipo, o qual pressupõe uma entrega ativa ao aborrecimento e à monotonia, a descoberta do espanto tanto na rotina como na quebra dela, a valorização da “vida ordinária em que nada se passa e tudo se passa”, e uma capacidade de, contemplando a luz que bate sempre sobre a mesma mesa, encontrar nela razões para sorrir, chorar, enfurecer-se ou questionar.
Os Dias Estão Numerados poderia ser definida como algo entre um exercício de memória e uma homenagem à beleza dos dias comuns, os que esquecemos por não terem sido abalados pelas quebras de rotina que alimentam a nossa incapacidade de ser e estar, apenas.
“Vivemos num tempo em que temos de assumir o nosso lado”
Jornal de Letras (JL): Alguma vez, olhando para trás, para as obras destes seis anos, foi surpreendido pela sua própria vida?
Daniel Blaufuks (DB): Ah sim, há dias que eu não me lembro. E há frases que, às vezes, tenho de pensar porque é que as escrevi, onde é que fui buscá-las, se são frases minhas, o que é que eu estava a pensar na altura. Isto é uma visualização do tempo, também.
Nós não pensamos no tempo como uma coisa que se possa ver, porque é uma coisa que está sempre a passar. Um ano tem este aspeto. Parece imenso, cabe imensa coisa, mas, se pensarmos, também é tudo muito curto.
JL: Tão curto que conseguimos identificar rapidamente pequenas coisas que se repetem. A frase “ethics before aesthetics” está, pelo menos, em duas obras.
DB: Vivemos num tempo em que, de facto, as pessoas olham para a beleza e não pensam quase em mais nada. Também há aqui uma tentativa de crítica e pensamento político. É algo que na fotografia, normalmente, não consigo ter e encontrei finalmente uma forma de poder fazê-lo. É que a fotografia não dá opiniões…
JL: Pois, está uma obra na primeira parede da exposição onde escreveu precisamente isso.
DB: Está? Ainda bem. Penso que encontrei uma forma de também dizer qualquer coisa. Se alguém ouve ou quer saber já é secundário, neste caso. Quis dar à fotografia uma voz, um lado. Vivemos num tempo em que temos de assumir o nosso lado.
Trabalhei muito sobre o Holocausto, no início. Quando fiz o Sob Céus Estranhos, que é um filme sobre os judeus refugiados, as pessoas perguntavam-me porque é que ainda estava a trabalhar sobre o assunto.
Hoje em dia já ninguém me pergunta isso, porque, tragicamente, ficou cada vez mais presente. E eu sinto, cada vez mais que, como artista e como cidadão, quero e devo tomar posições.
JL: Foi o que tentou fazer em Os Dias Estão Numerados?
DB: Apesar de ser difícil com exposições de fotografia, porque uma fotografia tem imensas leituras, mas não necessariamente uma opinião, aqui, com este formato, acho que consegui. Depois as pessoas concordam, não concordam, estão interessadas, não estão interessadas, isso já é outra coisa.