A fachada da Manuel Pereira Roldão está decadente: as janelas e os vidros estão partidos, os grandes portões fechados com cadeados, partes do telhado já caíram. Transforma-se, aos poucos, numa ruína pronta a dar lugar a um qualquer projeto imobiliário.
Já a memória de Sérgio Moiteiro, 66 anos, reformado e eterno sindicalista, não podia estar mais pujante. No local onde viveu o momento mais marcante da sua vida como coordenador do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Vidreira (STIV) é com um brilhozinho nos olhos que recorda os tempos de luta. Lá iremos.
Aos 13 anos este marinhense começou a sua atividade no vidro, era aprendiz de lapidário e trabalhava na Ivima, uma das principais empresas da Marinha Grande. Quatro anos mais tarde, achou que estava ser mal pago e foi, com meia dúzia de amigos, pedir um aumento ao patrão. Resultado? “Não deram. E eu despedi-me!”.
Ser sindicalista estava-lhe destinado. Nasceu numa família “com tradições democráticas e de esquerda”, explica. Antes da Revolução dos Cravos atuou na penumbra como contestatário do regime fascista e viu dois irmãos serem presos pela PIDE, um foi para Caxias, o outro ficou-se por Leiria. Não havia como fugir à luta, ela entrava-lhe por todos os poros.
Assim que o 25 de Abril de 74 trouxe a liberdade foi eleito delegado sindical na Ricardo Galo e, um ano depois, tornou-se dirigente do STIV, que passou a liderar em 1993. É já como rosto máximo dos vidreiros que se dá uma das maiores e mais mediáticas batalhas sindicais das últimas décadas, em Portugal – a crise na Manuel Pereira Roldão.
Estávamos no final de 1994, a empresa contava cerca de 400 trabalhadores, mas não pagava salários há vários meses e vivia uma situação económica bastante frágil. Era preciso agir. A solução foi vir para as ruas durante cinco semanas consecutivas, todos os dias. “A fábrica nunca desligou os fornos. Os operários iam trabalhar e quando saíam juntavam-se aos protestos”, conta.
Nos plenários diários fazia-se o ponto de situação e os vidreiros decidiam sempre o mesmo: insurgir-se até que a situação se resolvesse. Os tumultos foram crescendo à medida que as ações de contestação iam sendo reprimidas pelas forças de segurança, enviadas pelo governo de Cavaco Silva, atual Presidente da República. Quanto mais a polícia batia, mais a população da Marinha Grande entendia a luta como sua, fechando os estabelecimentos comerciais e juntando-se aos proletários.
Realizavam-se desfiles pelo centro da Marinha Grande, concentrações à porta da fábrica, cortes de estrada e da linha do Oeste. “A 27 de dezembro de 94 fomos barricar a Amieirinha [localidade, a dois quilómetros do centro da cidade, onde as vias rodo e ferroviária correm lado a lado]. Apareceu polícia como nunca se tinha visto… Vieram a bater nas pessoas até aqui e todos o que apareciam à frente levavam. Até o padre apanhou, quando estava a sair da sacristia.”
Junte-se a isto o suicídio de um trabalhador desesperado, detenções várias e perseguições das autoridades policiais que terminaram com agressões as manifestantes dentro da Câmara Municipal. Apesar da luta, dois anos mais tarde a Manuel Pereira Roldão fechou.
Se valeu a pena? “Pergunte a qualquer operário e ele vai dizer que sim. Lutava-se porque não havia outra solução, as pessoas já não eram pagas. Se não fossem os sindicatos como estariam hoje os trabalhadores?!”