Quando decidiu incluir a máquina de costura Oliva no seu livro O Estado Novo em 101 Objetos – Uma Montra da Ditadura Portuguesa (Lua de Papel, 632 págs., €23,31), Fernanda Cachão não teve dificuldade em encontrar uma para ser fotografada: bastou-lhe visitar à mãe, em Setúbal.
Durante muito tempo, a Oliva representou com frequência a única hipótese de trabalho das meninas. Não foi o caso de Dora, a mãe da jornalista e escritora, mas a máquina ainda resiste lá em casa, lembrando a todos uma época complicada a que ninguém quer voltar.
Fernanda Cachão tem 54 anos e passou os últimos cinco a pesquisar e a escrever um livro que traz o legado material do Estado Novo e é também o seu legado como mulher democrata, republicana e de esquerda. “Quis mostrar através de coisas concretas porque é que o Estado Novo era uma ditadura, como funcionava e por que razão não devemos gostar”, diz. “Essa foi a minha principal preocupação. E, no fim, pensei: ‘Olha, se não fizer mais nada, já fiz alguma coisa.’”
Comecemos pelo fim: qual foi o último dos 101 objetos a entrar?
Acabou por ser a máquina de costura Oliva da minha mãe. Inicialmente, não a via como um objeto do Estado Novo, porque uma máquina de costura é… uma máquina de costura, e eu já tinha escrito sobre marcas portuguesas que fabricavam artigos específicos para o nosso mercado. Mas o Estado Novo tinha a ver com a condição da mulher, e a costura, além de ter sido incentivada porque era uma atividade que o regime admitia como própria das meninas, também entronca na educação.
Ou na falta de.
Sim, quando Salazar chegou ao poder, a população analfabeta em Portugal era enorme. Ele decidiu então avançar com a alfabetização e a construção de escolas, porque havia um movimento exterior nesse sentido e porque a educação também servia para educar as pessoas na ideologia do regime. Mas o alargamento para quatro anos da escolaridade obrigatória só chegou às meninas em 1960 e a máquina de costura representava a possibilidade de trabalho, sendo que era um trabalho em casa.
A Oliva acaba por ser explicativa da natureza do Estado Novo.
E até numa história que achei curiosa: o empresário que a lançou esteve 16 anos à espera de autorização para a exportar, e isso mostra como a iniciativa privada tinha de estar enquadrada no regime.
O Pacheco Pereira, a propósito do arquivo Ephemera, já lembrou mais do que uma vez que os documentos também são objetos históricos. Ainda assim, a Fernanda não hesitou em escolher tantos papéis?
De início, isso levantou-me algumas questões, sim, porque queria fazer um livro com objetos e tinha muitos papéis. Mas a verdade é que tivemos uma ditadura do papel. Havia muita legislação e papéis para tudo.
Exemplos?
A ficha da PIDE, a licença para porte de isqueiro, os cartazes de propaganda ao regime, o decálogo [documento que resume os princípios basilares do regime, elaborado por António Ferro e difundido junto da população]… A repressão existia em cada momento da vida das pessoas.
Escolheu 101 objetos, mas podia ter escolhido mil? Ou 50?
Cinquenta era curto ou então seria só papel, porque os objetos de papel são os mais incontornáveis. Mil talvez fosse um exagero, mas podiam ser muitos mais do que os 101. O regime de Salazar foi a ditadura mais longa da Europa Ocidental.
Quase 50 anos de ditadura e cinco para ter este livro pronto. Foi uma pesquisa difícil?
Pesquisei muito, como é óbvio, mas o facto de ser jornalista ajudou-me a fazer a pesquisa de uma forma ágil e depois a ter uma abordagem que chega facilmente às pessoas. Não é um livro académico.
Passe o cliché, são histórias da História?
É um livro de uma jornalista sobre um período histórico. Quis mostrar através dos objetos e das histórias que eles contam o que foi o Estado Novo e o que é viver em ditadura, coisa que tendencialmente as pessoas esquecem. Percebo se alguém mais velho diz “antigamente é que era bom”, porque está a recordar a felicidade de ser jovem, esquecendo as dificuldades por que passou. Mas não consigo perceber como, de uma forma geral, as novas gerações (e mesmo a minha) se vão esquecendo daquilo que é uma ditadura. O que Trump está a fazer nos Estados Unidos da América, ao tentar regular as universidades, proibir livros ou cortar financiamentos de organizações da sociedade civil, são medidas que todas as ditaduras fizeram, mas a generalidade das pessoas não para um segundo para pensar nisso.
Fez este livro com o objetivo de não deixar esquecer? Ou para lembrar?
As duas coisas, como explico no prefácio, onde também digo por que razão não quis incluir objetos das ex-colónias. Refiro muitas vezes as colónias, mas os seus objetos fazem parte da História deles, não é a nossa. Quis abarcar alguns dos marcos da vida da ditadura em Portugal e mostrar por que razão ela não deve repetir-se.
Essa será a frase-chave: a ditadura não deve repetir-se.
Há aspetos da vida do Estado Novo que, às vezes, até são caricatos e podem dar vontade de rir, mas não queria que o meu livro fosse um objeto fofinho e engraçado.
Desde logo, na capa, tem uma fotografia de crianças da Mocidade Portuguesa…
… a fazerem a saudação fascista. Escolhi-a por causa do gesto, que era comum no início dos jogos de futebol e deixou de ser feito depois da II Guerra Mundial, quando o regime se alinhou com as democracias. É engraçado perceber a natureza das relações internacionais do Estado Novo, de acordo com os seus interesses.
O cinto da farda, com a letra “S”, tinha de ser um dos objetos, claro. O “S” era de servir ou de Salazar?
Deixo isso em aberto, porque não encontrei escrito em lado nenhum que o “S” era de Salazar. Mas, evidentemente, mesmo que fosse oficialmente de servir, tinha o duplo sentido, não é?
Partiu dos objetos ou dos temas de que queria falar?
Foi misto, mas havia coisas incontornáveis, como o decálogo do Estado Novo, no fundo a cartilha magna do salazarismo, que até foi replicado em pequenos cartões como aquele que escolhi incluir no livro.
E onde foi procurando os objetos?
Comecei pela Torre do Tombo, como não podia deixar de ser, onde está, por exemplo, o processo do Álvaro Cunhal, que é maravilhoso. É o seu primeiro processo e tem a descrição dos interrogatórios da PIDE, a quantidade de vezes que entra e sai, aliás, permanecendo sempre além de todos os prazos – e isso era a ditadura. Depois, agarrei na sua biografia e fiz uma leitura paralela. Os pides tinham razão, o Cunhal tinha estado na Rússia, mentiu do princípio ao fim durante os interrogatórios. O que não está no relatório da PIDE é que foi barbaramente torturado. Juntando tudo, fiquei com um objeto que mostra bem o que era o Estado Novo.
Também andou por alfarrabistas? Na Feira da Ladra?
Andei pelos mais variados sítios e tive grandes angústias e momentos de grande alegria, como ao encontrar a foto das chaves da António Maria Cardoso [sede da PIDE] que estava num livro publicado no pós-25 de Abril, quando se publicaram coisas de forma desbragada.
Há aspetos da vida do Estado Novo que, às vezes, até são caricatos e podem dar vontade de rir, mas não queria que o meu livro fosse fofinho e engraçado
Tinham sido décadas de censura, não admira. Por falar nisso, porquê um lápis bicolor na capa?
As pessoas associam a censura só ao lápis azul, mas ela também foi feita pelo lápis vermelho e azul. Aliás, até vi coisas escritas a caneta. Gosto muito desse lápis porque mostra que há sempre os dois lados e que a História é mais complexa do que se apresenta à primeira vista.
Qual é o objeto mais antigo que escolheu?
A Constituição de 1933, claro. E um dos mais recentes é uma coisa que achei maravilhosa, porque gosto muito do Chico Buarque: o processo de censura do Fado Tropical, de 1973, excelente para falar das músicas proibidas. Já tinha falado bastante sobre a censura à escrita e ao cinema, onde, aliás, encontrei uma coisa deliciosa: um frame do filme O Pátio das Cantigas em que aparecem uns miúdos a fugir à confusão numa carroça que tem escrito “Salazar” para mostrar que era um sítio seguro para as crianças [Risos].
Que maravilha, nunca reparei. Mas voltando ao Chico…
Por causa do seu Fado Tropical, pude recuperar as listas de músicas censuradas durante o Estado Novo e também tive a oportunidade de falar um bocadinho do Brasil. Inicialmente, a canção foi censurada nos dois países, porque “tornar-se no imenso Portugal” era uma crítica às ditaduras e ao colonizador. Depois do 25 de Abril, ela continuava a não poder ser reproduzida no Brasil, porque [esse verso] era considerado subversivo e perigoso.
Em Portugal, a tentativa de controlar a cultura impressiona.
A censura foi muito importante em tudo o que tinha a ver com criação, só se criava aquilo que o Estado deixava. Mas não podemos esquecer que a repressão também foi exercida pela população – as pessoas faziam-na por sua própria iniciativa, através das denúncias.
O livro traz algum relatório dos informadores da PIDE?
Refiro os relatórios, mas não escolhi nenhum como objeto porque tinham saído recentemente dois livros sobre isso, da Irene Flunser Pimentel [Informadores da PIDE – Uma Tragédia Portuguesa] e do Duncan Simpson [“Tenho o Prazer de Informar o Senhor Director…” – Cartas de Portugueses à PIDE (1958-1968)].
Seria chover no molhado?
Preferi falar no papel dos CTT na repressão, uma das minhas surpresas durante a pesquisa. Sabia que as encomendas eram abertas, sabia das escutas, mas não sabia que Salazar ajudou a fazer a Lei Orgânica dos CTT, pessoalmente, e que chegou a haver equipas da PIDE lá. Uso então uns selos do Almada Negreiros para escrever sobre o assunto.
O Almada teve uma relação complexa com o Estado Novo. Precisava de comer, mas não se calava.
É dele, por exemplo, o cartaz a apelar para o voto na nova Constituição, um plebiscito falso, orquestrado, onde se lê: “Nós queremos um Estado forte! Votai a Nova Constituição.” Mas Almada redime-se quando faz os painéis das gares marítimas, em Alcântara, que lembram o [trabalho de Cândido] Portinari. Se virmos bem, representam gente pobre, imigrantes, saltimbancos, muito longe da propaganda oficial.
Os selos serão o objeto mais pequeno que escolheu. E o maior?
É o carro de Salazar, o Chrysler Imperial blindado que foi encomendado depois do atentado de 1937. Após o atentado, Salazar muda-se do Campo Grande para o Palacete de São Bento, expulsando umas freiras espanholas [as Escravas do Sagrado Coração de Jesus], e são encomendados dois carros blindados (o outro é para Óscar Carmona, o Presidente). Este Chrysler há de ir parar ao Estabelecimento Prisional de Caxias, onde fica nas mãos do diretor, e em 1961 é utilizado para abalroar o portão na famosa fuga de oito presos políticos.
E, enquanto o carro estava em São Bento, Salazar usava-o muito?
Ele era um homem peculiar, não fazia muitas coisas, era um chato, basicamente. [Risos] Nunca foi pessoa de viajar e então esse carro passa logo a ser mais usado pelo seu motorista para ir buscar pessoas.
Era possível fazer um livro sobre o Estado Novo só com um objeto?
Não há um objeto que consiga explicar uma ditadura de quase 50 anos. Mas, entre as coisas palpáveis que podem exemplificar o que foi o Estado Novo, porque era um regime apoiado por uma extensa legislação em vários domínios da vida pública e privada, está o Diário do Governo. Usei-o para falar da proibição de as enfermeiras se casarem.
E as professoras primárias só podiam casar-se com autorização do ministro da Educação Nacional, que a concedia se o pretendente tivesse “bom comportamento moral e civil” e “vencimento ou rendimentos, documentalmente comprovados, em harmonia com os vencimentos da professora” – estou a citar a lei.
Isso acontecia com montes de profissões. No caso das enfermeiras, como começou a haver filhos ilegítimos, a Igreja conseguiu fazer cair a proibição. Mas ela não foi efémera, como muitos pensam, e eu utilizei o decreto-lei que a estabeleceu para repescar algumas leis patetas do Estado Novo.
Como a do isqueiro?
Essa tem direito a uma entrada no livro, que é mesmo uma licença para porte de isqueiro, onde explico como era uma medida protecionista pela simples razão de a fosforeira ser uma indústria nacional.
Passou-lhe pela cabeça este seu livro poder ser lido e apreciado por saudosistas?
Passou e por isso tive cuidado enquanto estive a escrever. Para mim, os objetos nunca poderiam ter só uma legenda, mas também não queria que fosse uma coisa sectária, não queria contar as histórias com adjetivos que nunca mais acabavam. Tive uma abordagem jornalística, mostrando através de coisas concretas porque é que o Estado Novo era uma ditadura, como funcionava e porque não devemos gostar. Essa foi a minha principal preocupação. E, no fim, pensei: “Olha, se não fizer mais nada, já fiz alguma coisa.”
Para não esquecer, lá está.
E para não se repetir. As pessoas hoje em dia não sabem muito bem o que é uma ditadura e desvalorizam o que é viver em ditadura, de uma forma geral, seja na do Estado Novo ou noutra qualquer. Nem têm a noção de que o Trump está a contaminar o resto do mundo e de que estamos a atravessar tempos perigosos. Mesmo as da minha geração, com pais que viveram em ditadura, tendem a esquecer o passado.
Em sua casa, falava-se de política ao jantar?
Setúbal é uma região politizada e as minhas memórias de infância também são politizadas. Lembro-me das discussões em família, de andar às cavalitas do meu pai no primeiro 1º de Maio e de alusões ao que havia antigamente e a que não se queria voltar. Havia pobreza e bairros de lata em todo o lado. Não era bom viver em ditadura. Todo o esforço de construção da democracia desde o sítio de onde partimos teve influência naquilo que somos hoje.
O que se segue? O Estado Novo em 101 Objetos – vol. II?
Não sei, mas apetece-me fazer coisas relacionadas, porque há falta de memória. As novas gerações não sabem nada de História, regra geral. Não há muitos miúdos no final da adolescência a saber quem foram Mário Soares, Álvaro Cunhal, Salazar ou Marcello Caetano. E isso é chocante porque é condição para serem manipulados.
(Entrevista publicada originalmente na VISÃO 1683)
